O fenómeno Adolf Hítler
15/01/2019O Fenómeno Adolf Hitler
Há quem considere Adolf Hitler como um dos maiores mistérios do séc. XX.
Como é que um demagogo se pôs à frente de um bando de desordeiros, conquistou o poder de uma das nações mais cultas do mundo, estabeleceu uma ditadura férrea, foi aplaudido pelos alemães até ao delírio, praticou o genocídio, mentiu para ir conquistando metade da Europa, e como é que esse demagogo conduziu uma guerra destruidora até levar a Alemanha à ruína.
Os historiadores lembram que o seu programa político já constava do livro que escreveu na cadeia, Mein Kampf, em 1923-1924, onde fala abertamente do “espaço vital” que deve ser conquistado na Europa e na Rússia e no ódio aos judeus. O que raramente se diz é que depois do Tratado de Versalhes a Alemanha ficou humilhada, obrigada a pagar inconcebíveis compensações de guerra, que as sucessivas conquistas de Hitler foram praticadas à sombra da displicência das democracias ocidentais que só viram o perigo do nazismo quando Hitler deu sinais de querer engolir a Polónia. E o que raramente também se diz é que Hitler e o seu nazismo apareceram em 1945 como o horror que doravante devia ser ultrapassado, erradicando-se os seus germes nocivos, a saber: a penúria, a humilhação de um povo, o desemprego, o risco permanente da desagregação do Estado, possibilitando que se abrissem as portas às soluções políticas mais truculentas. Com o fim de Hitler, as fronteiras da Alemanha separaram o mundo livre do comunismo, nasceu o sonho de uma Europa em cooperação que chegou à União Europeia como a conhecemos hoje, apareceu a sociedade de consumo na Europa, o Estado Providência, enfim, a derrocada nazi foi progressivamente apagando as ditaduras, as intolerâncias e os isolacionismos.
Procura-se interpretar o fenómeno Adolf Hitler como se ele fosse um mistério insondável: um histérico que acreditava no ocultismo e nas sociedades mágicas onde foi buscar o caldo de cultura para o racismo do III Reich; um orador extraordinário que dava às massas o que elas precisavam para se levantarem do peso da humilhação após a capitulação da Alemanha do Kaiser; um sucessivo encadeamento de golpes de sorte que levaram esse mesmo demagogo a criar o infame III Reich ludibriando a boa fé de quase todos os alemães.
Em “O Ficheiro de Hitler“, um veterano da II Guerra Mundial procura mais uma vez sondar o que há de complexo na personalidade de Adolf Hitler, nas suas contradições, origens, como dominou brutalmente o partido nazi e o pôs ao seu serviço, avançando imparavelmente para a destruição. O resultado é interessante, caso se pretenda um retrato a corpo inteiro do ditador, com os seus paradoxos, o seu despotismo e arrivismo. Mas continua a ser insuficiente para perceber como o nazismo foi uma doutrina altamente popular, como os alemães apoiaram Hitler praticamente quase até ao fim da guerra, como esse projecto político sanguinário acabou por catapultar os fundamentos da Europa de hoje (“O Ficheiro de Hitler”, por Patrick Delaforce, Publicações Europa-América, 2008).
Sabe-se que Hitler foi um artista falhado e um combatente medalhado. Na Alemanha dos anos 20, com os seus exércitos privados, com uma República de Weimar incapaz de suster o descalabro económico e as convulsões sociais, Hitler impôs-se publicamente pela promessa da ordem pública, por ter um projecto para levantar o orgulho da Alemanha, acabar com o desemprego e as humilhações de Versalhes. Juntou-se a arruaceiros, mestres em propaganda e agitação, ideólogos obscuros, prometeu dignidade para os trabalhadores e pôr fim a uma inflação que condicionava qualquer arranque para o progresso. Cercou-se de bruxos, protegeu a família de Richard Wagner, atraiu a juventude a natureza e o amor à pátria. Se bem que artista falhado, cercou-se igualmente de arquitectos como Albert Speer que propuseram construções arrojadas, marcantes da nova era de orgulho e arianização. As polícias nazis perseguiram toda e qualquer oposição, criaram-se leis para reduzir os judeus a gente sem quaisquer direitos.
Conquistado o poder, as multidões ovacionaram Hitler e o seu milagre económico. Hitler desembaraça-se dos seus rivais, cria uma nova hierarquia do Estado, subordina a Alemanha ao nazismo. Em 1936, o Jogos Olímpicos de Berlim testemunham a propaganda vitoriosa e o êxito do regime de Hitler: os jovens desportistas do Reich ganharam 33 medalhas que a propaganda não cansou de exaltar. Parecia que a honra recuperada da Alemanha continuava por saciar, eram necessárias novas fronteiras, juntar todos os alemães, no Ruhr, na Áustria, nos Sudetas, em Dantzig. A vertigem imperial estava lançada e em 1940 a Europa parece estar à mercê do nazismo. Incapaz de se controlar, Hitler e o nazismo declaram guerra à URSS, depois aos EUA, aos poucos esse império gigantesco entre no refluxo até que os aliados derrotam a Alemanha de Hitler na batalha de Berlim, em finais de Abril de 1945.
O livro “O Ficheiro de Hitler” apresenta pequenos e elucidativos quadros da personalidade de Hitler e do nazismo, fala da investigação nuclear e das armas secretas, da vida amorosa de Hitler e dos seus sonhos delirantes quando ele sonhava que a história se iria repetir como no tempo de Frederico o Grande. Ajuda a compreender que estamos perante um enigma mas não o desvela. Afinal, temos que ser mais rigorosos e contar a verdade toda a partir do momento em que erros monumentais consentiram a ascensão desta figura sinistra, o contexto nazi-fascista era amplo e foi-lhe favorável, não devendo ser esquecido o próprio descrédito vivido pelas democracias nos anos 30. Nenhum ditador pode ser dissociado das circunstâncias que o atiram para a ribalta ou o expulsam da cena. Duvida-se que uma personalidade por si só justifique a força de vontade que leva ao sucesso de um regime. Para que conste.
©Mário Beja Santos (2008)
Professor Universitário
Cofundador da UGC, União Geral de Consumidores
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Concordo particularmente com as duas últimas frases do artigo do Prof. Mário Beja Santos: “Nenhum ditador pode ser dissociado das circunstâncias que o atiram para a ribalta ou o expulsam da cena. Duvida-se que uma personalidade por si só justifique a força de vontade que leva ao sucesso de um regime.”
Por isso, gostaria de completar a imagem que nos deu o Prof. Beja Santos com algumas observações. Mencionou o Tratado de Versalhes como um dos factores-chave para o sucesso do Hitler na Alemanha. Não está errado, mas está um pouco subestimado. O maior defeito do Tratado de Versalhes não foi os resultados, mas sim o fato de não ter envolvido a Alemanha nas negociações.
Assim, Versalhes, na Alemanha depois da Grande Guerra, foi sempre considerado como um ditado e não um tratado. É verdade que as reparações a pagar, no valor de 132 bilhões de marcos de ouro, pesavam sobre a economia alemã, mas a própria Alemanha já tinha proposto um valor de 100 bilhões, apesar da Grã-Bretanha no início ter exigido 220 bilhões. A partir de 1924, com o Plano Dawes, o pagamento foi ajustado consoante o desempenho económico da Alemanha; e, cinco anos mais tarde, com o Plano Young, o valor total foi reduzido a 34 bilhões, e a partir de 1931/32 (antes da chegada ao poder de Hitler, em 1933!), na crise económica mundial, as reparações foram anuladas completamente (Ver artigo de Eckart Conze: https://epaper.zeit.de/webreader-v3/index.html#/843443/17). Apesar disso, Versalhes sempre fora objeto da retórica, dos direitistas na Alemanha daquela altura, e tinha sucesso com isto.
Mas, devemos tomar em consideração alguns outros fatores que, muito resumidamente, posso apresentar neste contexto: Na jovem República de Weimar existiam fortes poderes anti-republicanos que gostariam de restabelecer a monarquia, e que finalmente apoiavam o NSDAP (Partido Nacional-Socialista dos Trabalhadores Alemães) de Hitler, porque este partido também garantia a continuação das condições de bons negócios. Estes poderes encontravam-se nas elites intelectuais e económicas, e eles faziam tudo para lutar contra os social-democratas (SPD) e contra os comunistas (KPD).
Os poderes moderados não conseguiam impor-se e criar as condições para o sucesso da República. Em termos sociais, a população sofria, não só em consequência da guerra e das suas reparações, mas também da insuficiência económica dos trabalhadores, apesar da legislação social de Bismarck, já estabelecida no passado século XIX.
O NSDAP, embora autoritário e racista (ao mesmo tempo também era um partido ‘nacional-socialista’), modernizou a Alemanha em termos tecnológicos e de legislação social. A população alemã aproveitou o a economia pró-guerra, que fora um forte estímulo para a economia em geral. A discriminação, e no início a expulsão e depois a exterminação dos judeus, criaram também condições para corromper a população alemã. Muita gente conseguiu enriquecer à custa dos bens dos judeus. Talvez não soubessem o que lhes acontecia, mas não faziam perguntas nem queriam saber. Agiam como os três macacos: fechavam os olhos, fechavam os ouvidos e fechavam a boca. E isto continuou (Veja acerca disto e do seguinte: Götz Aly, Hitlers Volksstaat, Frankfurt a/Main 2005) durante a segunda guerra mundial. As autoridades alemãs e o seu exército saqueavam os países ocupados e financiavam assim a legislação social para a população alemã.
Durante a guerra, não falando dos bombardeamentos, a população alemã não tinha sofrido muito, só depois. Assim, o NSDAP não dependia só da personalidade de Adolf Hitler para exercer e garantir o poder sobre o povo alemão. Além disso, o NSDAP usou das novas tecnologias dos meios de comunicação, particularmente da rádio. Os alemães não se sentiam atrasados, a viver num país desatrelado do progresso, ao contrário. Mas a maioria não queria ver nem entender a que preço este progresso era alcançado e quem pagava esse preço.
Eckehard Fricke, licendiado alemão em teologia e pedagogia