Eu autor
16/06/2019Sobre o autor do texto OS SEM ABRIGO
Eu autor
“Que importa quem fala, alguém disse que importa quem fala”, exclamou Beckett referindo-se ao autor, àquele que escreve o texto. A noção de autor é um conceito que tem provocado entre alguns filósofos mais polémicas e divergências do que consensos.
Eu começo logo com uma interrogação: Eu sou autor? O que sou eu? Sou um ajuntador de imagens que guardo na retina, que trazem até mim fragmentos de recordações longínquas? Sou um Narrador? Sou um Historiador? ou sou um Ficcionista? Sou um Ilusionista das palavras? um criador de ilusões? Qual é o meu verdadeiro estilo de escrita?… Se tenho algum… Ou sou uma miríade de todos eles, contrariando-os a todos e não me apoiando em um só, talvez fruto de já ter lidado com muitos outros saberes? É um turbilhão de incertezas e de nenhuma resposta para tantas dúvidas. Quantos EUS sou EU ? Não sei o que sou. Nem sei se existo !… Parodiando as palavras de Descartes, se escrevo logo existo.
E, na verdade, Foucault consagra que, como autor, somente terei que fazer o papel do morto. De estar ausente, ali no lugar onde eu estou presente. Foucault faz várias aproximações do autor à morte. Numa delas socorre-se da mitologia árabe e vai até à Pérsia, ao conto AS MIL E UMA NOITES, onde Xerazade, a autora do conto, sabia que quando acabasse de contar essas estórias na alcova do rei, a sua vida acabava. Uma estória por noite. 1001 estórias diferentes da mesma história durante 1001 noites.
Se o autor morre, qual é a sua importância num texto? É preciso matar o autor para dar visibilidade ao leitor, o novo dono do texto.
Vejamos: Ao escrever o texto, arquiteto a narrativa e potencio uma forma de interação entre o leitor e o texto, causando-lhe interesse e satisfação. Sabendo que os textos que incutem mais prazer sensorial ao leitor são os que harmonizam um postulado utópico, estimulo-o a uma interatividade com o texto e não a uma prática passiva.
Entretanto, afasto-me progressivamente… o máximo possível do que escrevo,
apagando inclusive os meus caracteres individuais. Começa aqui a morte do autor.
Porque a minha discursividade basta-se a si mesma e alonga-se no texto, infinitamente até levar ao desaparecimento do autor. É o fim. É o texto que mata o seu autor. O autor faz o papel do morto no jogo da escrita, como disse Foucault. E não mais está ali no lugar onde está.
Se o autor está morto, acabou-se. Não se fala mais dele… Mas não é fácil estar ausente ali no lugar onde se está presente, por não poder evitar uma relação infinda entre o discurso e o visível.
Por mais exigente que eu seja com o que observo, o que vejo não se acomoda na completude do que transcrevo: Seja por estilos literários requintados,
por metáforas ou comparações, o lugar onde estas cintilam não é aquele que os meus olhos examinam.
Por isso, tenho que construir um texto que permita uma desejada ilusão a quem o lê,
e como autor terei que fabricar uma prática artística, uma experimentação, que mesmo sem o desejar algumas vezes poderá derivar para um exercício de substituição.
Como todo o ato de escrita é uma prática performativa, a fronteira que separa o autor do seu protagonista é muito ténue. Até que ponto esse ato de escrita, que se aloca na relação espaço-tempo, o AQUI E AGORA de Walter Benjamin, não representa o meu pensamento enquanto autor?
Agamben afirma que existe um instante em que a fala do autor se confunde com a do seu intérprete. No ato da criação o autor é uma pessoa só. E, no meio da escuridão do seu isolamento, ele ouve uma voz que fala consigo e sobre si próprio, mas que igualmente também poderá ser a sua própria voz. Mas é preciso dissimular. É preciso fingir não saber que existe essa aproximação arriscada.
Foucault exemplifica na pintura com o espelho do quadro AS MENINAS, onde o seu reflexo apresenta as figuras do rei e da rainha. Quereria ele dizer que quem se situasse diante do quadro poderia colocar-se nessa cena pintada no lugar do Rei e da Rainha? Afinal o lugar onde imperam os reis é também do autor ? Pelos vistos, a função do espelho nada mais é do que atrair para o seu interior, para o quadro, o olhar de quem o criou. Terei eu a técnica discursiva bastante para minimizar esta semelhança de falas? Conseguirei evitar que o meu olhar fique cativo do protagonista do meu discurso, como estimula o reflexo do espelho de Velásquez? Poderei eu, enquanto autor, atenuar essa relação entre a linguagem e o visível?
E o visível é um panorama terrível: O que seria desejável e, eu como Autor, não sei como, seria evitar o espectro deste visível que existe como doutrina: Poucas pessoas com muita coisa… Muitas pessoas sem coisa nenhuma… Muita coisa sem pessoas. E, como resultante complexa dos vértices desta pirâmide, OS SEM-ABRIGO.
Conseguirei eu evitar afixar o meu olhar no interior do texto? No protagonista da minha prática discursiva?
E no texto OS SEM ABRIGO, onde estou e onde não estou, no começo o pior está lá, iminente… Porque vou até ao limiar, menosprezando seja lá o que isso for ?
É com a falta de expectativa de Beckett que insisto em ir em frente mesmo sabendo que nada de bom se avizinha. O fim já lá está, no início, e ainda assim sigo em frente. Mesmo que a cada passo o chão me falte debaixo dos pés; a pouco e pouco… progressivamente. É sempre até à beira de um abismo a cada frase, mesmo que estas sejam estéticas e bem entoadas. É o fim que é pior, não é o começo que é pior. E o começo é dramático. Depois o meio. E depois o fim, o fim que é pior… E o fim… é o FIM.
Para terminar, apelo, mais uma vez, ao Teatro do Absurdo de Samuel Beckett e à sua À ESPERA DE GODOT: QUE IMPORTA QUEM FALA, ALGUÉM DISSE QUE IMPORTA QUEM FALA.
E, para os sem-abrigo que florescem na grande cidade, à qual nunca se acaba de chegar ao local da não memória, por isso a um não-lugar. Ao local onde as identidades se perdem, a individual e a da tradição enquanto experiência, QUE IMPORTA QUEM ESCREVE SOBRE A SUA ODISSEIA… QUE IMPORTA QUEM ESCREVE.
Que importa quem é o Autor…
QUE IMPORTA…”
13 de junho de 2019
EU AUTOR não é um poema nem é arte: é um trabalho feito com muito amor e empenho. E é com muita admiração e amor que o ofereço à autora QUINA CONTOS.
Apresentado, em estreia, em 13 de junho de 2019, na festa de homenagem à autora Quina Contos, no Bar INDA À NOITE É UMA CRIANÇA.
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2019)
Programador Cultural
hernani.figueiredo@sapo.pt
965 523 785
Olá, muito obrigado por visitar este espaço.
Espero que a sua leitura tenha sido do seu agrado.
Se for o caso de nos deixar agora, desejamos que volte muito em breve.
Até lá… e não demore muito. espreite
Este meu trabalho mereceu uma reação que entendi como muito interessante por parte da autora Quina Contos. Como ela foi manifestada no Facebook, julguei por bem trazê-la aqui para que os leitores deste meu espaço também a possam apreciar.
Já manifestei noutra plataforma o meu agradecimento à Quina Contos pela bondade do seu olhar, e pela generosidade do seu coração, à apreciação feita. Ouso citar O’Neill com as primeiras palavras do seu poema AMIGO: «Mal nos conhecemos / Inaugurámos a palavra “amigo”. /”Amigo” é um sorriso / De boca em boca, / Um olhar bem limpo, (…).»
Mais uma vez, muito obrigado minha amiga.
Hernâni de Lemos Figueiredo
«Estimado autor e amigo Hernani de Lemos Figueiredo, obrigada pela honra da sua maravilhosa teoria literária “Eu autor”, que muito me cativou e exortou a uma reflexão.
O seu sedutor texto é de grande atualidade e importância, na minha opinião e não só, pois que a análise da comunicação literária passou, a partir dos anos sessenta, a constituir, ela própria, um paradigma da teoria e da crítica literária e para alguns autores é mesmo o cerne da teoria da literatura.
O autor, de acordo com Aguiar e Silva, é “o indivíduo empírica e historicamente existente e é, sob os pontos de vista ontológico e semiótico, o primeiro agente, o primeiro responsável da enunciação literária”.
Para mim, enquanto professora de literatura, para simplificar, o autor é apenas aquele que cria o texto. No entanto, e parafraseando as suas interrogações, não será o autor, ao mesmo tempo, “um ficcionista”, “um ilusionista de palavras”, “um ajuntador de imagens”, um criador de ilusões, um estoriador, ou uma mistura de todos eles, com um ou vários estilos de escrita?
Será que se pode dissociar o autor, do narrador, do protagonista e da importante mensagem que poderá fazer a ligação do autor ao leitor?
Será que, como as suas conhecedoras palavras expressam, para os “SEM ABRIGO”, sobrevivendo num “não lugar”, onde a sua entidade se perdeu, o Autor existe?
Será que para eles “importa quem escreve sobre a sua odisseia?” “Importa quem escreve?” “Importa quem é o Autor?”
Parabéns e obrigada por tão importante e brilhante texto,
Joaquina Raimundo»