A reprodução técnica da obra de arte influencia as massas?

A reprodução técnica da obra de arte influencia as massas?

09/07/2015 0 Por hernani

Trabalho baseado em “A Obra de Arte na Época da sua Reprodutibilidade Técnica”, de Walter Benjamin

A reprodução técnica da obra de arte influencia as massas?

“Uma das principais tarefas da arte
sempre foi criar um interesse que ainda não conseguiu satisfazer totalmente”

Walter Benjamin

Walter Benjamin

Sempre foi possível reproduzir a obra de arte, ou seja, sempre os homens puderam copiar o que outros tinham feito; e damos, como exemplo, o caso dos gregos conhecerem dois processos de reprodução técnica de obra de arte: a moldagem e a cunhagem.

Mas, a reprodução da obra de arte por meios técnicos é algo novo. Por exemplo, são enormes as transformações que a tipografia, ou seja, a possibilidade de reprodução técnica, provocou na literatura. Com a litografia, a técnica da reprodução deu um avanço decisivo. A fotografia, o primeiro método de reprodução técnica revolucionário, ultrapassou as artes gráficas. “A mão libertou-se pela primeira vez, no processo de reprodução de imagens”, ou seja, as tarefas artísticas passaram a caber exclusivamente aos olhos que veem.

Também é verdade que a maioria das pessoas é incapaz de se deter na obra de arte; em vez disso passa através dela sem se fixar e vai apegar-se apaixonadamente na realidade humana a que a obra de arte alude.

Por sua vez, por altura das “Vanguardas”, Ortega y Gasset interroga-se sobre o que significa a aversão pelo “humano” no período da arte pura: “É porventura, aversão pelo humano, pela realidade, pela vida, ou é, bem pelo contrário, respeito pela vida e repulsa por a ver confundida com arte?”

Obra de Arte e a época da sua possibilidade de reprodução técnica é um assunto que arrebatou Walter Benjamin, e sobre o qual deixou para a posteridade um vasto campo para estudo.

Hoje, conhecem-se quatro versões do texto “A Obra de Arte na Época da sua Possibilidade de Reprodução Técnica”, pois Walter Benjamin propôs diversas atualizações ao original, uma primeira versão datilografada em alemão, de 1935, entretanto desaparecida, e que já era uma alteração de um manuscrito anterior.

Desejoso de ser reconhecido pelos intelectuais parisienses, para ver o seu trabalho publicado em França, Walter Benjamin acedeu às exigências de afastar o seu trabalho de um “texto de combate” para uma “edição académica”, querendo com isto dizer que lhe exigiram um “branqueamento” político do seu léxico. A sua debilidade económica, na altura, também ajudou para este desfecho na segunda edição do seu trabalho.

Permitiu-se substituir “Estado fascista” por “teoria totalitária de estado”, “Comunismo” por “forças construtivas da humanidade”, “reacionários” por “conservadores”, “guerra imperialista” por “guerra moderna”, entre muitas outras, e omitiu o Prólogo que assentava na reflexão de Marx sobre a mudança nas superstruturas sociais. Foi visto como um “manifesto sem dentes” quando comparado com a versão alemã posterior, iniciada em 1936 (só publicada em 1955), e traduzida para português, que constitui a terceira edição.

Nela, na tentativa do seu trabalho ser igualmente publicado em Moscovo, Benjamin esforçou-se por seduzir lexicalmente a ortodoxia soviética, mas Moscovo nunca publicou o seu texto, apesar de ter readquirido o sabor de um manifesto politicamente mais corrosivo, pois recuperou o vocabulário de combate de que tinha prescindido para a edição francesa. Quando se suicidou, em 1940, ainda tinha o texto à mão, pronto para mais uma alteração, e a ser incluído no seu “livro infinito”.

Walter Benjamin foi um homem que pensou o século XIX com a premonição na modernidade do século XX, mas as suas preocupações apontavam muito para além da filosofia. Para si, o século XX mostrava um capitalismo com uma capacidade de resistência maior do que aquela que Marx poderia imaginar. Após a sua aproximação ao marxismo, Benjamin ficou entusiasmado com essa teoria já que ela divergia das versões doutrinárias adotadas. Para ele era preciso deitar uma série de coisas abaixo, embora achasse isso perigoso.

Não se sabe quais os livros de Marx e Engels que Benjamin leu, mas o seu trabalho e a sua correspondência deixam claro que leu a “História e consciência de classe”, de Georg Lukács, e que ficou irreversivelmente marcado por este livro. A sua ligação amorosa com Asja Lacis, uma militante comunista da Letónia, e a amizade e farta correspondência trocada com Kitty Marx, com certeza que solidificaram o seu pensamento filosófico marxista.

O que não há dúvidas é de que Walter Benjamin era marxista, e desse facto se deu conta a “Escola de Frankfurt” a que pertencia, que mostrou certo desagrado disso, e da sua amizade com Brecht, um conhecido poeta e dramaturgo marxista alemão. E o seu trabalho “A obra de arte na época da sua reprodutibilidade técnica” tem um manancial de conceções socialistas associadas.

Benjamin apelou a Marx, ao colocar em plano preferencial o sentido do texto para o “combate político”: prescindiu de noções estéticas clássicas, como génio, estilo, forma e conteúdo, por exemplo, tão-somente para evitar a sua apropriação indevida por parte da propaganda fascista. Os conceitos por si empregues, novos na teoria da arte, visavam ser utilizados para a formulação de exigências revolucionárias na política artística.

E esses conceitos organizavam-se em torno de reprodutividade, autenticidade da obra como espaço/tempo, aura como caráter único e específico da obra, aparecimento de mecanismos técnicos que permitem o surgimento da obra artística como destinada à reprodutividade técnica, como a fotografia e o cinema.

Valendo-se novamente de Marx, Benjamin apontou como a cadência a que é sujeita a perceção humana, nomeadamente quando se está a ver um filme, é a mesma que norteia o trabalho de um operário numa linha de montagem.

A sua perceção arguta concebeu as mudanças tecnológicas do seu tempo de forma lógica, como a fotografia, a rádio e o cinema, impondo uma visão crítica, mas reconhecendo que os efeitos de uma estratégia de mercado ao favorecerem a reprodução técnica, a cópia e a falsificação da obra de arte, se converteram em sintomas da sua decadência.

Igualmente percebeu que esses sinais são condutores enriquecedores de experiências estéticas e alavancas que abrem uma janela para a perceção de uma moderna contemplação da realidade, pois igualmente percebeu que a imagem técnica emergente alterava radicalmente a relação das massas com a História, deitando por terra a sua noção aurática da obra de arte, refletida mais num mundo fenomenal, segundo Heidegger, do que num mundo de tradição cartesiana.

Este declínio da aura na obra de arte convida-nos a socorrermo-nos da mimese para descortinarmos que as primeiras obras de arte apareceram ao serviço de um ritual, primeiro mágico e depois religioso, e que foram objeto de adoração. E que ao longo da história a aura da sua existência nunca se separou inteiramente da sua função de ritual, porque no contexto da tradição o valor singular da obra de arte autêntica estava no valor de culto que ela teve no uso original.

Apesar de grandes intervalos históricos, o estilo de perceção das sociedades humanas modificou-se ao mesmo tempo que o modo de existência dessas sociedades. A forma como se organizava o estilo de perceção (o médium em que ela se realizava) não era só determinada pela natureza humana mas também por condições históricas. Na época das invasões dos Bárbaros, na qual nasceram a indústria artística do Baixo-Império e a Génese de Viena, não só se conhecia uma arte diferente da arte da Antiguidade, como também uma outra perceção.

As imagens produzidas na época do Império Bizantino tiveram um uso próprio e começaram a ser usadas nas missas, e algumas delas a serem objeto de culto ao Divino, a par de alguns archeiropoietos, autênticos tesouros da igreja primitiva, como o “Santo Mandylion” e até o próprio “Véu de Verónica”.
E essa proliferação de imagens submetidas ao culto originou um movimento contestatário que só o Concílio de Niceia pôs termo. E a imagem veio progressivamente a perder o seu valor enquanto divindade e a obra de arte começou a entrar em decadência e a empalidecer a sua AURA.

Maria-José Mondzain acreditou que foi neste período do fim da Antiguidade que se deu a queda dos invisíveis. Para Benjamin, essa queda não se deu com as práticas artísticas, mas sim com as questões técnicas respeitantes aos meios de reprodução.

Na Idade Média havia uma arte para os fidalgos, que era artística, idealista, convencional, e uma outra arte para os plebeus, que era satírica e realista. O quadro pintado é uma criação desta época.

Com os séculos XIX e XX surgem os movimentos vanguardistas positivos, como as “artes artísticas”, uma arte realista, o romantismo, onde os artistas reduziam ao mínimo os elementos estéticos e faziam a obra consistir, quase por inteiro, na ficção de realidades humanas, onde Beethoven, Wagner e Zola foram expoentes, na música e literatura, respetivamente. Para Benjamin produtos desta natureza só parcialmente são obras de arte, objetos artísticos, pois para os fruir não faz falta a sensibilidade artística; basta possuir sensibilidade humana e deixar que em cada um de nós se repercute as angústias e alegrias do próximo.

Em paralelo surgem outras artes nomeadamente com os movimentos vanguardistas negativos, onde a imagem foi libertada do seu significado maior (O AQUI E AGORA), e onde na maioria dos artistas reinava o repúdio às regras da arte tradicional. Mais ainda: causava-lhes repulsa. Esmeravam-se num novo sentido de arte onde a tendência era para evitar as formas vivas. Não só por não conter coisas humanas, mas também porque consistia ativamente na operação de desumanizá-la.

Foi o surgimento de uma nova sensibilidade estética, de uma Arte Pura ou arte negativa, onde para estes artistas jovens a obra de arte seria uma coisa sem transcendência alguma, e onde uma obra de arte fosse somente isso, uma obra de arte. Benjamin viu nesta nova arte “um exemplo da destruição da aura da arte tradicional”.

E esta nova arte dividiu o público em duas classes: os que a entendiam e os que não a entendiam. Os artistas (aqui, também os entendidos em arte) e os que não o eram. Porque a nova arte era uma arte artística.

Para Ortega y Gasset “todas estas novas artes tiveram alguma resistência na perceção das massas, porque o estilo que inova demora algum tempo a conquistar a popularidade. O que não aconteceu com a irrupção romântica, por o romantismo conquistar rapidamente o povo para quem a velha arte clássica nunca tinha sido coisa muito chegada.”

No início do século XX a reprodução técnica das obras de arte alcançou um tal nível que não só começou a transformar em objeto seu a totalidade das obras de arte do passado e a submeter a sua repercussão às mais profundas transformações, como também conquistou um lugar próprio nos modos de produção artística – reprodução da obra de arte e a arte cinematográfica.

A autenticidade de uma coisa é a essência de tudo o que ela comporta de transmissível desde a sua origem, da duração material à sua qualidade de testemunho histórico. Por sua vez, a técnica da reprodução “desprende” a coisa reproduzida do domínio da tradição, na medida que a multiplica, que substitui a sua existência única pela sua existência em massa, e lhe permite vir em qualquer situação ao encontro do recetor.

E, se a transformação dos meios por que se processa a perceção contemporânea se podem entender no sentido de uma decadência da aura, também é possível detetar as suas causas sociais. Também a reprodução técnica da obra de arte transforma a relação das massas com a arte.

Através do conceito de “diversão”, Benjamin falou de uma profunda alteração nos mecanismos de perceção nas artes: “a receção na diversão”, cada vez mais percetível em todos os domínios da arte, e que é sintoma das mais profundas alterações na perceção, tem, no cinema o seu verdadeiro instrumento de exercício. Aqui a perceção do espetador potencia uma mediação tanto com o imediato, o filme que está a ver, como com o irreal, pois a história que o filme conta não está a acontecer.

Compare-se a pintura com um filme. A pintura permite a contemplação, o espetador pode entregar-se aos seus pensamentos. Diante de um filme mal fixamos o olhar já a imagem mudou. A imagem do filme não pode ser fixada. De facto, a cadeia de associações de quem contempla estas imagens é imediatamente interrompida pela sua transformação – efeito de choque do cinema.

Igualmente Benjamin partiu da comparação entre fotografia e filme para demonstrar o caráter artístico da produção cinematográfica: “Fotografar um quadro é um modo de reprodução; fotografar num estúdio um acontecimento fictício é outro. No primeiro caso, o objeto reproduzido é uma obra de arte, e a reprodução não o é: na melhor das hipóteses, é um desempenho artístico.

Benjamin associava o caráter tátil do cinema ao da arquitetura, que possui uma receção de dois tipos: através do uso e da perceção, ou seja, tátil e ótica. Para Benjamin, a receção tátil advém do uso, de um envolvimento total do recetor com o objeto, que resulta de uma anulação da ‘aura’ da obra de arte. O valor de uso — tátil — característico da cópia, opõe-se ao valor de culto, dominante no original que impõe uma relação à distância, uma contemplação e um envolvimento meramente espiritual. No cinema, a qualidade tátil, através da técnica formal do ‘choque’ permite novas formas de perceção e de envolvimento.

Para Niklas Luhmann, o mundo da perceção converte-se em “objeto comunicativo”, bastando ao homem limitar-se à pura perceção, por já “só fazer sentido pensar se se está a entender o ato comunicativo como ele pretendia ser”. Isso coloca-nos no limiar do entendimento de considerarmos estas novas formas de perceção como um moderno meio de comunicação de massa.

Assim também o entendeu Adorno, amigo de Benjamin, que acusava a indústria da cultura – entenda-se reprodução técnica das obras de arte, e mais precisamente a fotografia e o cinema – de controlar o inconsciente do homem-massa. A isso Benjamin respondeu que os meios de comunicação modernos não penetram, ou invadem o sujeito, mas o liberta e o ajuda a sair de dentro de si, abrindo-lhes as portas da perceção, reconhecendo, no entanto, a possibilidade dos novos meios transformarem o homem-massa (proletariado) num sujeito para formar uma massa consciencializada, tendo como objetivo final a sua libertação.

Walter Benjamin, que apostava que a receção revolucionária da obra de arte “revolucionaria” a própria obra de arte da era pós-cultural e pós-aurática, tornou-se um ícone para os atuais, e futuros, estudiosos da história da arte. Ele empenhou-se no resgate das imagens do passado como um acordar, uma atualização e uma partilha do presente, livrando os homens de um saber empobrecido.

Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2015)

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