A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (I)

A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (I)

04/01/2019 0 Por hernani

Uma obra ímpar do 2.º Sargento António dos Anjos

A Guiné logo a seguir às operações da pacificação (I)

 Há pelo menos dez anos que andava atrás deste documento do 2.º Sargento reformado António dos Anjos, um testemunho sem paralelo, praticamente omisso em quem estudou e escreveu este período que vai entre as décadas de 1910 e 1930, René Pélissier faz-lhe uma referência não muito abonatória, até uma crítica mesquinha, paciência. O Sargento dos Anjos irá descrever ao pormenor a sua comissão de dois anos, como aqui chegou, ao tempo havia uma epidemia de febre-amarela, e logo comenta: “Encontrava-se nesse tempo parte da colónia ocupada militarmente, mas a maior parte insubmissa, habitada por raças extremamente rebeldes e de espírito aguerrido, havendo apenas dois Residentes civis, um em Bafatá, outro em Farim”.

Este “resumo” de António dos Anjos não é fácil de encontrar, descobri-o na Hemeroteca Municipal de Lisboa, recomenda-se vivamente a sua leitura pelo caudal informativo.

Já reformado em Bragança, dá-nos muita informação. Logo referindo as cinco grandes etnias de instintos ferozes que estavam em estado de rebelião: os Papéis, os Balantas, os Oincas, os Manjacos e os Mancanhas ou Brames. “No entanto, os mais temíveis eram os Papéis e os Oincas, porque estas duas raças eram descritas com um verdadeiro horror”. Procede ao enunciado das campanhas anteriores onde de vez em quando se engana em datas, o importante é a relação que nos deixa, teve seguramente acesso a alguém que as inventariara: 1844, Ilha de Bissau, Papéis revoltados; 1870, Cacheu, região dos Manjacos, sempre insubmissos; em 1878, Nhacra, região dos Balantas, distúrbios e recusa de pagar impostos; 1880, Forreá; 1886, Cuor, região dos Beafadas; 1891 e 1894, ilha de Bissau, ataques constantes à vila; 1895, na ilha de Jata, região dos Manjacos; 1897, Oio, região dos Oincas; 1902, Belor, região dos Felupes e igualmente outra rebelião no Oio; 1907, Felupes em estado de guerra, uma operação em Campampe e Sansacuto, região dos Fulas; 1908, ilha de Bissau, Cuor e Quínara, a região dos Beafadas em estado de revolta e uma operação em Samonge, região dos Balantas, Farim; 1911, Binhome, região dos Balantas; 1912, Susana, região dos Felupes ou Baiotes.

O Sargento dos Anjos lança-se a pormenorizar a operação ao Oio, em 1897, tendo à frente Graça Falcão e António Caetano, foi um massacre a que escapou milagrosamente Graça Falcão, que andou sozinho a monte, autêntica odisseia. Dá testemunho da rebelião na ilha de Uno, em dezembro de 1918, a coluna a que ele pertencia resistiu à fúria dos Bijagós graças ao uso das armas.

Voltando atrás, dá conta como o governador Júdice Biker, em 1902, castigou os Oincas pelo massacre de 1897. E recorda outro dado que muitas vezes o historiador descura, as lutas interétnicas que se prolongaram com violência mesmo depois das operações de pacificação no tempo de Teixeira Pinto. Um exemplo: “Ainda em 1931, houve nos subúrbios de Bissau guerra entre Papéis e Mancanhas, principiando junto ao mercado de Bissau; e mesmo à vista das autoridades, os Papéis assassinaram Mancanhas que procuravam fugir para dentro da fortaleza”.

Sempre bem documentado, detalha as operações de Teixeira Pinto, recorde-se que o autor desconhecia completamente a obra que na década de 1940 a Agência Geral das Colónias publicou, de acordo com o documento preparado pelo filho do capitão Teixeira Pinto. Diz ele que os três grandes colaboradores de Teixeira Pinto foram Abdul Indjai, régulo do Cuor e do Oio, Mamadú Sissé, nomeado régulo dos Felupes e o chefe de guerra Alfá Mamadú Seilu.

Assistiu às transformações de Bissau e é encomiástico: “A cidade de Bissau, que ainda há poucos anos era pequena vila de ruas apertadas, sem alinhamento, dali a pouco tempo entrava em progresso, ajardinando-se, abrindo-se ruas largas e avenidas, construindo-se magníficos edifícios, tornando-se o ponto de convergência de boas estradas que, pela sua vez, faziam irradiar, lentamente, a civilização para todos os pontos da colónia, e por onde, amiudadas vezes, transitavam automóveis e camiões carregados de mercadorias, atravessando sertões que têm muitos quilómetros de extensão, onde ainda havia milhares de negros que nunca tinham visto um branco”. Alarga-se nas suas observações sobre o porto e cais do Pidjiquiti e apresenta a fortaleza.

Em certos momentos, a sua comissão militar vem ao de cima, recorda os valorosos que caíram em combate, vale a pena citá-lo, vai seguir-se uma série de testemunhos do que viu durante a sua comissão de dois anos:

“Chegando algum dia a fazer-se uma ponte que seja construída em alvenaria ou em cimento armado, no rio entre Mansoa e Bráia, onde desde há anos se encontra a ponte feita com paus de cibe e carantins, dever-lhe-ia ser dado o nome de Ponte dos Mártires da Guiné, visto que foi naquele ponto onde moram massacrados tantos militares que iam pela primeira vez tentar abrir caminho de Mansoa a Bissorã.

As campanhas que Teixeira Pinto fez na Guiné, onde se travaram os mais violentos combates foram as de: Região do Oio em Canchuncuto e Mansabá; Região dos Manjacos, no Xôroenque e Basserel; na Região dos Balantas, na Bráia e Encheia; na Região dos Papéis, em Intim, Jaál e Quinhamel, e onde os Papéis e Grumetes sofreram a maior derrota foi no Biombo. As praças que mais se distinguiram nestas campanhas foram os Sargentos Moens, Faria, Vilaça, Amorim, Jacinto e o cabo Godinho.

O sargento Amorim, também 1919, na campanha de Mansabá – região do Oio – mais uma vez mostrou a sua coragem e valentia, junto do desditoso alferes Figueira, onde este no seu posto de combate tombou para sempre, quando foi atacado aquele pequeno quartel. Ainda hoje jazem os restos mortais deste oficial ao lado de três soldados indígenas, junto ao baluarte que heroicamente defendiam! Era um homem modesto, desprendido de vaidades, um excelente camarada e muito estimado pelos seus superiores!

Não devo deixar despercebido o 2.º sargento Augusto das N. Rocha, que além de, por uma casualidade, não ter feito parte de nenhuma campanha das que houve na Guiné, desembarcou nela em 1912 e ainda nela se encontra com residência fixa em Safim, região dos Papéis, sendo um bom colonial. Este transmontano de rija têmpera foi um valente! Mostrou-o quando em 1907, voluntariamente, foi incorporado na grande coluna de operações, do comando do bravo transmontano Alves Roçadas, à grande e aguerrida região dos Quamatas, no sul de Angola, onde foi condecorado com a medalha de valor militar.

Ainda atualmente se encontram transitando na Guiné algumas praças, já reformadas, que em tempos que já lá vão, treparam parte do solo desta rica colónia, debaixo de fogo e que foram louvadas e condecoradas com a medalha de cobre comemorativa das campanhas do Exército Português, com a legenda “Bissau 1915”: os sargentos Amorim, Teixeira, Anjos e o cabo Godinho.”

(continua)

Queridos amigos, Somos levados a questionar como é que este testemunho, uma edição de autor, um documento escrito em 1935 e editado em 1937, passa praticamente à margem da historiografia da Guiné colonial. Pélissier, sempre com azedume e a palmatória da crítica, fala de erros na datação, é assunto importante, mas estabelece uma confusão entre a árvore e a floresta, ninguém, até àquela data, escrevera com tanta riqueza de pormenor e, como se irá ver no texto seguinte, o testemunho do sargento António dos Anjos dá-nos uma larga margem para desvelar a Guiné nos anos 1910 e 1920, como mais ninguém o fez. Um abraço do Mário

©Mário Beja Santos (2018)
Professor Universitário
Cofundador da UGC, União Geral de Consumidores

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