Globalização da Complexidade (v): Descobrimentos Portugueses, a primeira Globalização Moderna

Globalização da Complexidade (v): Descobrimentos Portugueses, a primeira Globalização Moderna

20/03/2019 0 Por hernani

Baseado na obra de Mike Featherstone, 

“A Globalização da Complexidade” (v)

Descobrimentos Portugueses, a primeira Globalização Moderna

Ó mar salgado, quanto do teu sal
São lágrimas de Portugal!
Por te cruzarmos, quantas mães choraram,
Quantos filhos em vão rezaram!
Quantas noivas ficaram por casar
Para que fosses nosso, ó mar!


Valeu a pena? Tudo vale a pena
Se a alma não é pequena.
Quem quer passar além do Bojador
Tem que passar além da dor.
Deus ao mar o perigo e o abismo deu,
Mas nele é que espelhou o céu.

Fernando Pessoa, in Mensagem

Poderemos considerar os Descobrimentos Portugueses como a primeira tentativa globalizadora moderna. Foi uma globalização peculiar, pois a componente de “conquista” não estava evidente; também porque a população portuguesa da época era escassa e não suportaria a “ocupação” dos territórios “descobertos”. Foi uma “globalização” onde à componente mercantil se juntou a religiosa. “As duas forças impulsionadoras da ideia de chegar às especiarias da Índia eram os ganhos financeiros de um comércio marítimo com a Índia e o seu empenho em destruir o Islão”. (ROSA, et al., 2006 p. 42). As especiarias da Índia, tão apreciadas na Europa, eram importantes, mas ”nenhuma utilidade pode legitimar o risco imenso de atravessar os mares. Para enfrentar o Oceano é preciso ter interesses poderosos. Ora, os verdadeiros interesses poderosos são os quiméricos”. (Gaston Bachelard). (FRANCO, et al., 2005 p. 97).

E Franco continua com estas “motivações” portuguesas. “Aquando da abertura do mundo ao próprio mundo (como dizia o Padre António Vieira) na modernidade, algumas ordens vão reivindicar para si a tarefa gloriosa de trabalhar para a construção da utopia milenarista de Joaquim de Fiora. (…) A Idade do Espírito Santo seria tutelada por uma nova ordem religiosa que protagonizaria a planificação da história. Franciscanos Espirituais e os jesuítas reclamariam para si o papel de iniciadores da Terceira Idade Messiânica”. (FRANCO, et al., 2005 p. 99).

E foram os franciscanos de tendência espiritualista que motivaram a rainha Isabel de Aragão a fundar o Império e a Coroação do Espírito Santo. “Em 1283 a rainha Santa Isabel fundou a «Casa do Santi Spritto»” (VALADARES, 1654). Porquê o seu início em Alenquer e não em qualquer outra povoação portuguesa? A sede da igreja do Pai fora Jerusalém, a do Filho, Roma. A Terra Santa vindoura onde situá-la? «Os iniciados na doutrina dos espirituais franciscanos identificaram Alenquer como sendo a povoação portuguesa com mais semelhanças a Jerusalém, a que constituía o modelo de Cidade Santa, a imagem representativa da teofania»” (LEMOS FIGUEIREDO, 2003 p. 97). “Todas as classes sociais participavam neste culto que se tornou, desde o reinado de D. Diniz, numa das principais devoções da Casa Real (…) pelo que não admira que tenha aparecido “intimamente ligado ao acto inicial e decisivo da expansão marítima portuguesa” (CORTESÃO, 1978 p. 154),

Entretanto acontece Alcácer Quibir e emerge o mito do rei Encoberto. Para o Padre António Vieira, “Portugal é o reino que deve assumir a vinda do «Reino de Deus». O «Soberano Oculto» é chamado a executar os desígnios divinos e tornar-se-á Imperador do Mundo”. (FRANCO, et al., 2005 p. 115). Agostinho da Silva vai na mesma direcção: “O Espírito Santo é a alma do mundo e todo o corpo que se lhe oponha se abaterá por si, embora pareça às vezes que forças alheias entram em acção”. (SILVA, 1984 p. 30). E assim, a componente quimérica a que se refere Bachelard, neste caso o Espírito Santo, tornou-se a paidéia nacional nos Descobrimentos Portugueses.

Antes dos Descobrimentos Portugueses, a Europa mal conhecia as regiões setentrionais. Ignorava-se quase completamente a África negra. Da Ásia, as notícias correntes compunham-se de algumas realidades e muita fantasia; e do Extremo Oriente pouco ou quase nada era sabido. (…) Ptolomeu continuava a ser a fonte principal dos conhecimentos geográficos”. Para Cortesão, a Europa não conhecia o homem nem a terra que habitava, e à falta de conhecimentos exactos, formara-se uma literatura geográfica, na sua maior parte mítica e fabulosa e, na menor científica, sobre as terras desconhecidas. Tipo específico dessa literatura foi o «Livro das Maravilhas» cujo êxito, espantoso, perdurou mais de 200 anos: “Lendas, romances de cavalaria e informações duma fantasia delirante. Árvores que produziam carneiros; cascas de caracóis tão grandes que podiam servir de habitação a muitos homens; seres humanos com uma só perna, cabeça de cão ou situada sobre o tórax. Povoavam esse mundo extraordinário” (CORTESÃO, 1978 p. 14).

Mitos e fantasias que vinham da Antiguidade. “Os primeiros cristãos a visitar a Europa e as Ilhas Britânicas encontraram pagãos que contavam contos de fadas, de animais falantes e de outras coisas maravilhosas. Os Cristãos logo se apressaram a juntar a essas histórias magníficas, outras novas acerca dos seus Santos. (…) Tal agradável costume perdurou no tempo”. (LANG, 1912 p. 7). No seguimento desta linha, o Sermão aos Peixes, pregado na cidade de S. Luis do Maranhão em 1654, por Santo António: “Enfim, que havemos de pregar hoje aos peixes!? Nunca pior auditório. Ao menos têm os peixes duas boas qualidades de ouvintes: ouvem e não falam”. (VIEIRA, 1979 p. 103). Aquela era uma época de santos, o que para o Cardeal de Richelieu, o super-todo-poderoso primeiro-ministro de Luis XIII de França, era uma contrariedade. ”É indubitável ser pouco cómodo estar rodeado de santos. É uma gente que não faz política, mas a sua presença, a sua influência directa ou indirecta é uma realidade moral irrefutável, especialmente quando o todo-poderoso ministro do rei “cristianíssimo” se encontra entre padre e príncipe da Igreja romana”. (BLUCHE, 2003 p. 35).

Os Descobrimentos Portugueses exaltaram um processo que conduziu a novas civilidades e que exigiu da Europa um conhecimento novo. Foi um tempo de profundas transformações onde muito mudou os homens e os seus imaginários. “Foi um tempo de descoberta, que contagia todos os europeus, e onde o que mais conta é descobrir resposta para as perguntas que ficam sem ela”. (CNCDP, 2002 p. 27). “Foi, sem dúvida, uma época de ouro para a Europa e para a cultura portuguesa. Portugal descobriu em menos de um século o Cruzeiro do Sul, a Astronomia Náutica, a rumação da poma, o nónio, a navegação por alturas, as correntes favoráveis, os ventos alisados, a alteridade e, desprendeu-se dos autores antigos. Fez, deste tempo e deste espaço, um tempo único e irrepetível da inovação e da descoberta das novidades” (CNCDP, 2002 p. 9).

Poderemos dizê-lo, foi um desbravar terreno para a época das luzes que se aproximava; foi o início da superação da superstição que caracterizava a Idade Média. Sobretudo foi uma transição entre o período da cultura-mundo, onde “não podemos distinguir uma esfera cultural autónoma, onde aquilo a que chamamos cultura não aparece separado das relações políticas, religiosas, mágicas, parentais ou entre clãs”, e o período do ”aparecimento das democracias modernas, portadoras dos valores de igualdade, de liberdade e de laicidade. (…) Em nome do seu ideal universalista, a modernidade pretendeu fazer tábua rasa do passado e edificar um mundo racional, desembaraçado dos particularismos, bem como do poder da Igreja, das tradições e das superstições” (LIPOVETSKY, et al., 2010 p. 17).

A Rota do Cabo, aberta em 1497-1498 por Vasco da Gama e institucionalizada como «Carreira» no seu ritmo anual de armadas com a viagem de Pedro Alvares Cabral, foi a primeira grande rota interoceânica dos Tempos Modernos. Na própria época, houve mesmo quem chegasse a afirmar que uma viagem na Carreira da Índia era então «sem qualquer dúvida a maior e mais árdua de todas as que se conhecem no mundo» (Padre Alesandro Valignano citado por Boxer:1981, 203)” (GUINOTE, et al., 1998 p. 37). “A partir do momento em que foi instituída a partida anual de armadas de Lisboa com destino ao Índico, com a finalidade de estabelecer uma rota comercial marítima directa para as especiarias entre a Europa e o Oriente (GUINOTE, et al., 1998 p. 43) produtos novos começaram a chegar a Lisboa, que eram depois drenados para as velhas rotas intraeuropeias. “Corriam pelas estradas do Brabante, da Champanha, em direcção à Alemanha do Sul e aos Alpes, alcançando as praças do Norte de Itália”. (CNCDP, 2002 p. 19).

Apesar dos propósitos dominantes serem o religioso e o mercantil, a “globalização” portuguesa influenciou de maneira insofismável a Europa pré-moderna. Poderemos dizê-lo, com resultados mais favoráveis para a Europa do que para Portugal. A Europa beneficiou ao nível do conhecimento. Construiu um homem novo. Teve acesso às especiarias do Oriente, muito mais rapidamente e muito mais económicas. A sua «civilização» chegou às «quatro partidas do mundo». No reino de Portugal, esse mesmo benefício não conseguiu compensar os danos causados pela migração humana em direcção ao mar; e a agricultura, grande sustentáculo do reino, viu-se abandonada. Os seus filhos «emigraram», muitos deles para sempre; ou por se fixarem noutras paragens ou por morte em naufrágios ou em lutas contra os corsários ou populações nativas. Portugal era um reino de viúvas. Tudo isto culminou com a perda da Independência Nacional. A partir daí Portugal nunca mais se recompôs. Salvou-se o sentido «universalista» dos portugueses, pois hoje as populações dos países «descobertos» têm uma ligação a Portugal que qualquer outro país colonizador não conseguiu granjear com as populações das suas ex-colónias.

Como já dissemos acima, foi um período onde a participação portuguesa foi determinante para a concepção do “homem novo” da Europa. Entre eles, Damião de Goes foi um dos mais notáveis, “o humanista luso mais cosmopolita de Quinhentos”, segundo Marcel Bataillon. “Deve ser difícil encontrar, no nosso século de Quinhentos, um europortuguês mais interventivo e dinamicamente mais interpelante. A preocupação pela sorte dos povos da Lapónia injustamente explorados, o interesse pela vida dos prelados suecos depostos das suas sedes, os serviços de intermediário entre Roma e os dissidentes, as disputas ocasionais, em Estrasburgo, com Martinho Butzer, Gaspar Heid ou Wolfgang Koepfel; em Basileia e Friburgo com Erasmo, Amerbach, Glareano, Segismundo Gelénio, Munster ou Grineu; em Vitemberga com os corifeus evangélicos Lutero e Melanchthon, ou em Pádua com alguns inacianos e outras personalidades de altíssima craveira como os cardeais Bembo e Sadoleto, são indicadores sobejos de que os «negócios diplomáticos» e os «estudos universitários» lhe não esgotavam o tempo nem saciavam a sua «forma mentis» aberta aos ventos da cultura”. (TORRES, 2002 p. 11).

No entanto, Damião de Goes foi condenado pela Inquisição, em auto de fé de 16 de outubro de 1572, “de comer carne em dia de defeso, de ter falado com Lutero e de receber a hospedagem de Erasmo”. A prisão perpétua foi o seu destino, e só o seu imenso prestígio, em Portugal e na Europa, o salvou da fogueira. O seu processo durou 27 anos. (HENRIQUES, 1898 p. 127) e (BENAZZI, et al., 1998 p. 263). No entanto, “a Europa da cultura é bem anterior a toda a organização política: a Europa da cristandade, a dos mosteiros, a das universidades, a das luzes eram bem mais unidas culturalmente do que foi, a partir do fim do século XVIII, a Europa dos Estados-nação que fragmentou e, por vezes, comprometeu essa «consciência europeia». E se um certo cosmopolitismo cultural se manteve através das épocas, a nível das elites, pese embora as fronteiras existentes e a necessidade de controlo das pessoas, os Estados-nação enriqueceram as consciências culturais nacionais e reduziram a parte do denominador comum, que impregna com profundidade todas as culturas de um continente, à herança judaico-greco-latina, quaisquer que sejam as repercussões ulteriores e muito diversas, de outras correntes”. (RIBEIRO, 2003 p. 313).

Lisboa (Universidade Lusófona), 3 de Maio de 2011

TRABALHO COMPLETO

I – A Modernidade é um projeto da Revolução Industrial  – 

II- O Pós-modernismo é uma nova etapa do Capitalismo 

III – A Idade Moderna chegou ao fim e está aí a Idade Global  

IV – O Clube Bilderberg, um Governo Mundial Único

V – Os Descobrimentos Portugueses foram a primeira Globalização Moderna  –  VOCÊ ESTÁ AQUI

VI – O posicionamento da Cultura na Hipermodernidade  – 

VII – A Cultura do consumismo na pós-modernidade  –

VIII – A passagem da «escrita» para a «imagem» na Pós-modernidade  –

IX – A Hipermodernidade, o pós-humano e a chegada do Cyborg   – 

X- A Modernidade é a industrialização da guerra  –

XI -Bibliografia

Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2011)

Programador Cultural

hernani.figueiredo@sapo.pt

965 523 785

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