Da Velhice (ii)

Da Velhice (ii)

23/01/2019 0 Por hernani

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Um Texto de Cícero traduzido por Damião de Goês

“Da Velhice” (ii)

Livro de Marco Tullio Ciceram : Catam maior, ou da velhice, dedicado a Tito Pomponio Attico / traduzido por Damiao de Goes. Lisboa : na Typographia Rollandiana, 1845. Nova ed.

Livro de Marco Tullio Ciceram : Catam maior, ou da velhice, dedicado a Tito Pomponio Attico / traduzido por Damiao de Goes. Lisboa : na Typographia Rollandiana, 1845. Nova ed.

O “mais cosmopolita dos humanistas” do seu tempo, assim se refere Marcel Battailon a Damião de Goes. Um dos portugueses de quinhentos que mais viajou na Europa da Renascença e da Reforma, podemos nós acrescentar Longe da Pátria, este alenquerense ilustre, visitou quase todos os países e capitais da Europa, relacionou-se com os maiores vultos da cultura do seu tempo, foi recebido pelos grandes senhores do poder, contactou com os mais altos dignitários da igreja de Roma e com os fundadores do movimento reformista. Mas nunca o afastamento dos seus pátrios lares, ou estes relacionamentos e convívios ilustres, alteraram ou diminuíram o apego afectivo à sua terra distante. Orgulhava-se do país onde nascera, e desse facto deu muitas vezes público testemunho, pois sempre procurou dar a conhecer aos outros a realidade portuguesa, e divulgar as notícias dos grandes acontecimentos que iam ocorrendo em Portugal, envolvido então, na espantosa gesta da Descoberta. Com esse intuito escreveu em latim diversas obras sobre as coisas da sua terra e dos grandes factos dos seus patrícios: Legatio Magni Indorum – 1532, (Referência à embaixada etíope a Lisboa), Commentarii Rerum Gestarum in India.- 1538, (Narrativa do primeiro cerco de Diu), Hispania – 1542, (Extensão, poder, fertilidade e varões ilustres da Península Ibérica), De Bello Cambaico Ultimo – 1549, (Narrativa, do segundo Cerco de Diu), Urbis Olissiponis Descriptio – 1554, (Descrição da cidade de Lisboa). Todos estes ensaios e narrativas em que se exaltam os valores pátrios e das gentes portuguesas, foram orgulhosamente assinados pelo seu autor: Damiani a Goes Equitis Lusitani – Damião de Goes cavaleiro português. Além destes, outros textos ele escreveu ainda em latim, o idioma de comunicação dos homens cultos do seu tempo, que o usavam falando-o ou utilizando-o nos seus escritos e nas suas cartas. Esta preferência linguística, bem característica dos tempos do Renascimento, não invalida que tanto Damião de Goes como o seu amigo Erasmo de Roterdão afirmassem, ao contrário de muitos dos seus pares, que “as línguas modernas eram tão capazes como as da antiguidade clássica, de exprimir pensamentos elevados e como tal elas deviam ter um lugar de relevo nas actividades culturais de uma nação…” Fiel a estes princípios, foi em português que Goes, redigiu a Chronica do Felicissimo Rei Dom Emanuel – 1566 e a Chronica do Príncipe Dom Joam, Rei que foi destes regnos segundo de nome – 1567. Importante também, a exemplo de outros humanistas, foi a sua actividade como tradutor e comentador de um texto bíblico e de uma obra clássica. De facto em 1538, quase no fim da sua permanência na Universidade de Pádua, um ano antes de casar com Joana de Hargen, Damião de Goes entregou em Veneza ao mestre impressor Stefano da Sabbio, o texto traduzido do livro do Eclesiastes, e um manuscrito com a tradução comentada de Senectute do escritor latino Marco Túlio Cícero (106 – 43 A.C.). Neste mesmo jornal, já escrevemos uma simples referência à tradução do Eclesiastes agora trazido pela primeira vez ao conhecimento do público português numa edição fac-símile da Fundação Gulbenkian. Aqui voltamos, para referir desta vez, a recente reedição de Senectute – Da Velhice, pela Biblioteca Nacional de Lisboa em 2003. Salientemos a importância desta publicação para os estudiosos da bibliografia goesiana, pois a anterior edição está há muito esgotada. Oxalá outras edições e reedições surgissem nestes tempos, em que o ilustre alenquerense parece ter saído de um esquecimento de séculos. Ao mencionar a publicação Da Velhice julgamos de algum interesse recordar o autor deste texto traduzido por Damião de Goes. Marco Túlio Cícero, é ainda hoje um nome bem conhecido entre os eruditos escritores das letras clássicas e muitos dos seus textos ainda hoje fazem parte das selectas de aprendizagem, como exemplos perfeitos da língua latina (latim cicerónico). Considerado o mais eloquente dos oradores romanos, não teve rival na oratória forense; as suas intervenções a este nível eram caracterizadas pela riqueza da imaginação e pela destreza da sua dialéctica. Plutarco escreve a propósito de Cícero: “Os seus sucessos nos tribunais foram brilhantes e tão rápidos que em breve deixaram atrás de si todos os que seguiam a mesma carreira” (Vidas Paralelas: Demóstenes -Cícero.) Os numerosos tratados de natureza jurídica e os seus textos filosóficos, são considerados monumentos literários ainda hoje apreciados. Também a sua vasta correspondência, constitui no seu conjunto uma obra prima de história e de literatura. Como político assistiu ao fim da República de que era um animoso defensor. Ficaram célebres algumas das suas empolgantes intervenções no Senado destacando-se: as Catilinárias, as Filípicas ou as Verrinas. Partidário de Pompeu, depois do assassinato de César nos idos de Março de 44, manifestou-se opositor de Marco António, posição que lhe valeu a proscrição. Pouco tempo depois foi morto por ordem do seu adversário. É ainda Plutarco que escreve: “executada a sentença contra Cícero, mandou António que lhe cortassem a cabeça e a mão direita, com a qual escrevera as orações que compusera contra ele. Quando lhas apresentaram, ficou a olhá-las com grande prazer, dando repetidas gargalhadas, e, depois de se ter saciado, mandou que as pusessem sobre a tribuna na praça, querendo assim insultar um morto” (Vidas Paralelas: Alexandre – Júlio César). Esta vida agitada e brilhante do homem a quem os senadores romanos atribuíram o título honorífico de “pater patriǽ” (pai da pátria), ainda hoje suscita interesse e justifica o sucesso editorial da série de romances, do escritor contemporâneo Steven Saylor, inspirados na vida e na actividade jurídica de Cícero. O diálogo Da Velhice, agora apresentado aos leitores portugueses numa tradução de Damião de Goes, foi uma das últimas obras do escritor. De facto este texto foi acabado dois anos antes do seu assassinato, quando Cícero completava 64 anos de idade. Este trabalho de tradução comentada foi um projecto bem amadurecido. Damião de Goes, já no tempo da sua aprendizagem de latinidades com Cornelius Grapheus em Antuérpia, terá feito os primeiros contactos com a elegante prosa de Cícero. Mais tarde, durante os seus estudos em Pádua com Lázaro Bonamico, professor de latim e de filologia, irá ultimar os trabalhos de tradução. Também são conhecidas as cartas trocadas entre Damião e o humanista e pedagogo flamengo Nicolau Clenardo, ao tempo mestre do Infante D. Henrique, a propósito dos comentários que acompanham a tradução portuguesa Da Velhice. Erasmo, o grande amigo do nosso cronista, ter-lhe-á transmitido o gosto pelas traduções e comentários dos textos clássicos, sublinhando a grande responsabilidade e as exigências de tais tarefas. É Damião de Goes que escreve a propósito do seu mestre e amigo de Friburgo: “Afirmava não ter achado no estudo cousa mais árdua que trasladar, nem digna de mor louvor, fazendo-se bem (…) Que cousa dizia, pode ser de mor glória que amostrar aos latinos, em sua própria língua a elegância e prudência gregas e aos gregos o latim? E assim das outras linguagens. Nem que cousa mais abominável que o caluniar das linguas declarando-as sem o sabor, doçura e doutrina que nelas há.” O diálogo Da Velhice que pertence ao ciclo das obras de carácter filosófico do autor é um texto de natureza moralizante que se apresenta como sendo “uma medicina espiritual contra as preocupações de quem sente a vida em declínio…”, no dizer de Francesca Lechi. Damião de Goes na dedicatória do seu trabalho refere que ele é “um escudo e defesa contra a velhice” ou mesmo “um livro de conforto”. Cícero escreve a propósito do seu livro que a sua “composição (…) foi tão deleitosa que não somente lhe tirou todos os desgostos da velhice, mas ainda a tornou mais doce e alegre”; noutro passo desta introdução do texto, acrescentando ainda que “parece ser bom escrever alguma cousa da velhice (…) e fazer que a cada um de nós (ela) seja mais leve de passar”. Como era hábito literário da época, Damião de Goes tal como fizera na quase totalidade dos seus trabalhos, também dedicou este seu livro. Desta feita ao antigo Vedor da Fazenda do Reino, Francisco de Sousa, conde de Vimeiro. Parece que esta dedicatória seria justificada, como sendo um testemunho de gratidão pelo grande apoio que o Vedor da Fazenda lhe teria prestado, quando em 1533 se pôs a hipótese de Damião de Goes vir a ocupar o cargo de Tesoureiro da Casa da Índia em Lisboa. Esta manifestação de reconhecimento pelo seu protector, justifica também as referências elogiosas que lhe faz na Crónica do Príncipe D. João. Não é conhecido o número de exemplares da edição Da Velhice publicada em Veneza em 1538 na tipografia de Estêvão Sabio, mas tratando-se de uma edição de autor é natural que poucos livros terão sido editados. Actualmente sabe-se da existência de muitos poucos: um exemplar existente numa colecção particular portuguesa, de um outro que pertence à Biblioteca Nacional Marciana de Veneza; em Inglaterra, a Biblioteca do Colégio de All Souls de Oxford apenas possui a página de rosto do livro. Além destes exemplares confirmados, há ainda a vaga referência de outros dois mencionados por Francisco Leite de Faria. Se a estes dados se acrescentar que a única reedição conhecida desta obra do grande humanista português, foi publicado na primeira metade do século XIX, na Tipografia Rolandiana de Lisboa (1845), compreende-se a importância e o significado desta edição fac-símile da Biblioteca Nacional, agora posta à disposição de todos os que se interessam pelo estudo da vida e da obra de Damião de Goes.
©António Rodrigues Guapo (2005)

Estudioso de História Local

in Jornal D’Alenquer, 1 de Agosto de 2005, online

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