Amazónia a “Mãe Grande”: A desertificação é irreversível?

Amazónia a “Mãe Grande”: A desertificação é irreversível?

01/10/2000 0 Por hernani

Projecto Heranças Portuguesas da Amazónia

Amazónia a “Mãe Grande”

A desertificação é irreversível?

Passou o colonialismo português na Amazónia mas ainda não passou o neocolonialismo brasileiro na Amazónia brasileira. Quando o sistema democrático for mais perfeito, isso permitirá que a riqueza do país mais rico do mundo seja melhor distribuída e, então, o povo amazónico viverá mais feliz.

HERANÇAS PORTUGUESAS DA AMAZÓNIA - Alenquer (Pará)  - Recepção calorosa aos portugueses, no dia 4 de Setembro de 2000.

HERANÇAS PORTUGUESAS DA AMAZÓNIA
– Alenquer (Pará)
– Recepção calorosa aos portugueses, 4 de Setembro de 2000, no desembarque do navio Silja Souza, que também serviu de hotel à comitiva.


Junto a Óbidos (terra de Pauxis), encontrava-se a lendária “Terra Sem Mal”, onde, perto do “Grande Rio”, vivia uma tribo de mulheres-guerreiras, “altas, brancas e membrudas”, com a particularidade de não terem um seio, para assim melhor manejarem o arco e a flecha. Eram comandadas por “Conori”, a rainha das amazonas. Por volta de 1542, deu-se um encontro entre as belicosas e valentes amazonas e os espanhóis, comandados por Francisco de Orellana, que “foram obrigados a fugir, levando os costados do bergantim crivados de lanças e flechas e o seu barco fugiu parecendo um porco-espinho”. Em homenagem a tão valentes guerreiras, os portugueses baptizaram aquela zona de AMAZÓNIA e ao “Grande Rio” deram o nome de RIO AMAZONAS.
Foi esta Amazónia, mítica e fantástica, que visitei, entre os dias 27 de Agosto e 12 de Setembro de 2000, integrado no “Projecto Heranças Portuguesas na Amazónia”. Não foram mais que contactos ribeirinhos, pois a verdadeira Amazónia, essa ficou escondida nas entranhas da selva misteriosa e profunda.
A visita coincidiu com a campanha para as eleições municipais de 1 de Outubro, o que de certo modo condicionou a nossa presença, pois ela foi aproveitada para fins eleitorais, numa autêntica manobra “terceiro-mundista”, mas como “em Roma sê romano”… e como diz o poeta brasileiro Petrarca Maranhão, “neste mundo todos estamos em trânsito. Bem ou mal, cumprimos o nosso percurso, mas todos transitamos”. O essencial era o contacto com a população e esse foi quente, sincero, comovedor e inesquecível. Essa mesma população que me pôs ao corrente do que é difícil o visitante ver em tão curto espaço de tempo.
A informação sobre a Amazónia já percorreu o mundo inteiro e a ideia de que está irremediavelmente perdida, quanto a mim, parece-me forçada, embora ao sul do Pará, o homem já tenha destruído uma área superior à França.
A Amazónia cabocla é uma acumulação de riquezas, que se encontra frágil e vulnerável e, em muitos casos, ainda em estágio neolítico. É uma zona quase desabitada que oferece as condições para ser prontamente ocupada, mas o modelo económico que está a ser aplicado não é compatível com a integração humana e defesa ecológica, devido ao uso sem regras que lá se pratica. Do garimpeiro ao madeireiro e até ao fazendeiro, todos estão unidos na mesma tarefa de degradar o equilíbrio ambiental. A ambição de extrair da Amazónia as suas potencialidades até esgotá-las sem ter o cuidado de preservá-las ou renová-las, poderá ter o seu custo a médio prazo e numa zona que tem a maior reserva de água doce do mundo (1/5 de toda a água doce do planeta), todos querem intervir: desde toneladas de mercúrio com que os garimpeiros envenenam as águas dos rios, até ao desbravar da floresta, embora alguns madeireiros me tenham dito que o abate de árvores é selectivo e logo seguido de reflorestação, (o que me deixa algumas dúvidas, pois quantas árvores mais frágeis não serão arrastadas quando uma árvore de grande porte é abatida?).
O índio da Amazónia não é um povo bárbaro, pois tem regras, leis e valores próprios. Possui uma verdadeira religião, cujos fundamentos são a imortalidade da alma e o culto dos mortos. Devido à colonização e à consequente miscigenação do português com o índio e com o negro, o homem amazónico é um mestiço (caboclo) que difere de fisionomia de zona para zona. Na maioria são católicos, embora se verifique a proliferação de várias outras “igrejas”.
São muito sensíveis a lendas, assombrações, mitos e encantamentos. Botos, Yaras, Jabotis e uma infinidade de Entes fantásticos moram no seu imaginário. Inclusive, fala-se num fabuloso tesouro que os jesuítas teriam deixado, quando o Marquês de Pombal os expulsou do reino. Os jesuítas sempre pensaram em regressar ao Brasil.
É na Amazónia onde as tradições e heranças portuguesas se fazem sentir mais do que em qualquer outra parte do Brasil. Para além da herança portuguesa, existe uma herança indígena: é um viver hoje; o amanhã é o amanhã. É outro dia e logo se verá. Talvez por esta falta de ambição e de perspectiva de vida, há cerca de três anos, houve um suicídio colectivo de vinte jovens ribeirinhos.
Na Amazónia os povos não apresentam o mesmo grau de conhecimento e por isso continuam a ser povos diferentes (ocupantes/ocupados) e não há humanitarismo suficiente para que todos possam usufruir dos mesmos recursos. Onde se prende o caboclo por fazer a queimada da sua mandioca, ou porque quando tem fome, comer tartaruga, ou porque tem de abater um qualquer animal para aproveitar a sua pele para se proteger do frio, e se deixa em liberdade qualquer assassino ou corrupto, a troco de uma simples fiança, ou mesmo quando um prefeito (presidente de câmara) ganha por mês o equivalente a mil e cem contos e uma professora do ensino básico ganha cerca de dezoito contos, com certeza esta não é uma sociedade justa.
O prefeito (presidente de câmara), lidera um sistema presidencialista, pois está tudo à sua responsabilidade. São os secretários (funcionários da prefeitura) que executam, sob a sua orientação as tarefas inerentes aos pelouros. Ao escasso orçamento municipal, junta-se-lhe o desemprego, as estradas péssimas; a falta de saneamento básico (é vulgar verem-se os esgotos, a céu aberto, nas bermas das ruas das cidades); falta de consciência ambiental; pouco cuidado com a saúde pública (a carne, peixe e outros produtos alimentícios estão expostos muitas horas ao sol). Com frequência e sem qualquer pejo, apregoam o seu grau de dificuldade e de pobreza, como se alguma culpa tivessem disso.
Apesar desta falta de estruturas, tem-se avançado, muito lentamente, no campo da educação e da saúde, o que para os padrões do Brasil, dizem ser relativamente satisfatório.
O amazónico é vítima de graves agressões sociais:
a) A frequência com que barqueiros estrangeiros cativavam jovens nativas a subirem aos seus barcos. Abusam delas, engravidam-nas e depois largam-nas mais adiante;
b) A clara pouca simpatia pelos americanos: estes, alguns anos atrás, andaram a experimentar contraceptivos em nativas, fazendo destas cobaias para os seus ensaios: vinham casais, normalmente religiosos, para evangelizar: só que na prática eram botânicos e geólogos que faziam os seus testes e experiências em animais, pessoas e vegetais e o resultado punham em caixas para levarem tudo. Os rótulos das caixas indicavam uma coisa, mas lá dentro ia outra.
c) A uma hora de barco de Santarém, existe uma comunidade, com cerca de quatrocentas pessoas, descendentes de escravos remanescentes de quilombos do oeste do Pará. Vivem há mais de duzentos anos numa ilha chamada Saracura, e não lhe é reconhecida identidade enquanto grupo social, detentora de direitos igualitários. Em Óbidos, quando um amigo me apresentou este caso, a sua indignação era grande e sincera, pois Saracura anseia pisar a sua própria terra sem recear a expulsão. Saracura grita pela liberdade e pela vontade de existir. Voltarei a este assunto em momento oportuno.
Quanto ao aspecto político, este pareceu-me precário e com várias situações a merecer certa ponderação:
a) Quando chegamos a uma das cidades homónimas, estranhamos não ser recebidos pelo prefeito. Lá nos esclareceram que este estava escondido, em parte incerta e que, inclusive, tinha sido interdito de concorrer a estas eleições para a prefeitura. Os motivos não são difíceis de adivinhar;
b) Quando o caboclo é obrigado a votar em determinado candidato, para assim poder manter o seu posto de trabalho;
c) Numas eleições anteriores, um prefeito, que agora muito simpaticamente nos recebeu, para se livrar de um opositor, aliciou-o com uma casa para ele desistir. Conseguido isso e ganho as eleições, passado algum tempo, enviou dois “jagunços” e foi menos um opositor que ficou;
d) Talvez seja este estágio político o principal culpado do cancro principal do Brasil: a corrupção. Fui testemunha de barragens policiais, onde houve necessidade de fazer uma colecta de um real por pessoa, para entregar aos polícias para assim impedir que estivéssemos ali horas a identificar-nos. Um brasileiro que nos acompanhava, desfez-se em desculpas e disse que “no Brasil a corrupção é lei, pois desde o simples polícia até ao Juiz Federal todos são corruptos”.
Grande parte das causas de devastação da Amazónia está na especulação de poderosos grupos financeiros que operam nos grandes centros de poder internacionais. Existe uma necessidade urgente de uma alternativa económica que possa atrair os investimentos e resgatar a dignidade do homem do interior da Amazónia. O desenvolvimento de projectos de pesquisa e de conservação com interesse nos assuntos ligados ao ambiente. No entanto, penso que a questão amazónica não poderá ser resolvida de fora para dentro mas sim chegar primeiro através dos próprios habitantes: tem que se ouvir o homem amazónico, desde a sabedoria milenar do índio até à vivência secular do caboclo.
Passou o colonialismo português na Amazónia mas ainda não passou o neocolonialismo brasileiro na Amazónia brasileira. Quando o sistema democrático for mais perfeito, isso permitirá que a riqueza do país mais rico do mundo seja melhor distribuída e, então, o povo amazónico viverá mais feliz.
Terminada esta viagem de sonho, sinceramente nunca esperava ser tão desejado e tão bem recebido, tão acarinhado e tão apalpado, pois os caboclos queriam ter a certeza que era de carne e osso como eles. Aberto, comunicativo e participativo, um povo que vive mal, embora não passe fome, um povo que ama a sua terra, embora a perspectiva de evolução de vida seja muito limitada. Tem uma cultura de simpatia, de abertura, de alegria, de ritmo no corpo e um grande amor aos portugueses, que nos deixou a todos comovidos.
Não se consegue apagar a história, de maneira que é impossível ocultar o notável esforço lusitano pela integridade e construção deste Brasil fantástico e, particularmente, desta Amazónia imensa e inesquecível que tem o fascínio do sobrenatural. Eles, amazónicos, consideram que, depois de Pedro Teixeira e do Padre António Vieira, esta viagem dos portugueses foi o acontecimento histórico mais importante na baixa Amazónia.
Chegado ao fim deste trabalho verifico que muito ainda ficou por dizer, inclusive, a acção dos portugueses no Pará, o que virei a falar numa oportunidade futura. Do que foi vivido, torna-se difícil escolher o acontecimento mais importante. No entanto, referencio os três que mais me marcaram: Um povo que chorou à nossa chegada e que ficou nos cais a chorar à nossa partida; Na Prainha, o António, caboclo de 11 anos, abeirou-se de mim e perguntou qual era o meu nome. Logo que lhe respondi, agarrou-me um braço e disse: “ó Hernâni não te vás embora, fica cá”; a corrupção quase generalizada que campeia por todo o lado e que bloqueia o desenvolvimento do povo amazónico, culminando com os diversos cartazes afixados no aeroporto de São Paulo, onde se procura um senhor X, que simplesmente é Juiz Federal. Provavelmente, não será por ter faltado a alguma missa domingueira.

    “Recordar é viver,
    Transformar num sorriso o que nos fez sofrer,
    Ressurgir dentro d’alma uma idade passada,
    Como em capela d’ouro há cem anos fechada,
    Onde não vai ninguém, mas onde há festa ainda…
    Se eu não hei saber como a saudade é linda!”
      Júlio Dantes – A Ceia dos Cardeais



Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2000)

diretor do Jornal D’Alenquer

in Jornal D’Alenquer de 1 de Outubro de 2000, p. 3 (Editorial)

hernani.figueiredo@sapo.pt

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