Moçambique: de"terra queimada" a "terra alagada"
01/04/2000Moçambique
De “terra queimada” a “terra alagada”
O desespero e a miséria a esta escala, é algo a que ninguém deveria ser sujeito. Mais que os danos materiais, a tragédia moçambicana tem um rosto humano
De uma mão cheia de assuntos, uns mais que outros mas todos a merecerem reflexão, ponderei um pouco na escolha para o tema de hoje. Desde a viagem ao Brasil comemorativa dos 500 anos da chegada de Pedro Álvares Cabral, passando pelo novo livro do general Loureiro dos Santos, que prevê para daqui a 15 ou 20 anos, como inevitável, uma terceira guerra mundial; da confissão das culpas da Igreja e do pedido de perdão a Deus, do papa João Paulo II, pelos pecados e erros ao longo de dois mil anos, mais precisamente “pelas cruzadas e pela época da Inquisição”, “pela atitude para com os judeus, o povo da Bíblia”, “pela época das colonizações” e “pela divisão entre cristãos e hostilidade contra outras religiões”, passando para as preocupações da “Comissão Mundial para a Água” quando afirma que a Terra está a esgotar as reservas de água, escolhi a tragédia moçambicana por parecer aquela que está mais próximo de nós.
Como analisa João César das Neves, “Moçambique é bem um símbolo de África do final do milénio. Em 1960, o país era pobre mas em desenvolvimento. Numa lista das 103 nações do Mundo, tinha 36 países atrás de si. Nos 13 anos seguintes, até 1973, registou um crescimento sustentado à taxa de 3% ao ano. O seu nível de vida aumentou num total acumulado de 46% no período, ultrapassando países como a Argélia, Paraguai, Sri Lanka e Zâmbia. A partir de 1974, devido à guerra civil, transformou-se em terra queimada. Bastaram 3 anos para o nível de vida descer abaixo do valor de 1960. Em 1990, o relatório do Banco Mundial, declarou que, pela primeira vez, Moçambique era o país mais pobre do Mundo. A partir de 1998, mostrou ligeiros sinais de recuperação, mas agora vieram as cheias e tudo voltou atrás”. De terra queimada passou a terra alagada (as águas cobrem um território de 56000 quilómetros quadrados maior que a Suíça que tem 41000 quilómetros quadrados).
Moçambique é um país destruído pelas cheias, pela passagem do ELINE pela ameaça do GLÓRIA e do HUDAH, pela cólera, pela malária endémica, pela sida e pela pobreza absoluta, e exige da nossa consciência colectiva, outras formas de mobilização, que não apenas o perdão parcial ou total da dívida, pois esta dificilmente iria ser cobrada na íntegra.
Os governos ricos que contribuíram para o endividamento de Moçambique, agora não ajudaram a tempo, sendo mesmo os militares sul-africanos que, durante três semanas, lutaram praticamente sós nas operações de salvamento. Um desses pilotos, que voa há 33 anos, afirmou que “as operações de socorro em Moçambique constituem o maior desafio da sua carreira”.
As autoridades sanitárias moçambicanas consideram irresponsável o comportamento de algumas agências humanitárias estrangeiras que operam no quadro de emergência, pois na ânsia do protagonismo, funcionam desgarradamente e sem qualquer tipo de coordenação. Isso foi evidente na zona de Sofala, onde alguns aviões das organizações estrangeiras, ao sobrevoarem centros de acolhimento de desalojados, lançaram sacos de plástico contendo dois pães e onde vezes sem conta, os sacos desfizeram-se e o seu conteúdo espalhou-se pelo chão. A luta a que se assistiu nestes centros pela disputa dos pães foi indescritível. Mesmo debilitados pela fome, as pessoas descobriram ânimo e correram para ganhar vantagem. Alguns tiveram a sorte de apanhar um saco e dividiram o seu conteúdo com os restantes membros da família.
As cheias foram cegas, súbitas e devastadoras e o drama daí originado, agravado pela miséria de um povo, está a ser uma das mais terríveis calamidades deste final de milénio. O que se passa em Moçambique é uma tragédia de proporções quase bíblicas, onde as mães desesperadas tentam reanimar os seus bebés mortos, dando-lhes de mamar, onde se prevê que irão aparecer milhares e milhares de corpos, quando as águas baixarem, onde um porta-voz de uma organização humanitária assumiu o facto de se estar a escolher quem vive ou quem morre. O desespero e a miséria a esta escala é algo a que ninguém deveria ser sujeito. Mais que os danos materiais, a tragédia moçambicana tem um rosto humano.
Questiona-se se a visão dantesca desta tragédia, ainda deixa ânimo para que alguém se bata nos “torneios de alecrim e manjerona” que, com frequência, vão deflagrando cá na nossa “paróquia”.
INQUÉRITO:
Fernando Avellar – Alenquer
Moçambique sofre de um problema grave que é a falta de infra-estruturas que pudessem minimizar as catástrofes naturais, o que é um reflexo da nossa colonização assim como da guerra civil que grassou no país após a independência. Neste momento todas as ajudas são poucas, pois são milhões de pessoas que estão desalojadas e serão muitas que nos próximos tempos irão morrer por falta de meios. Penso que temos estado a dar uma resposta relativamente boa, em relação às condições que temos e às missões em que estamos envolvidos noutros lugares do Mundo. Tenho ouvido falar de diversas Campanhas de envio de determinados bens, mas ainda não ouvi falar nas garantias do transporte desses bens.
José Correia – Alenquer
É um problema que me deixa bastante triste porque se vê mulheres, crianças e velhos percorrerem quilómetros à procura de socorro e quase sempre em vão. A comunidade internacional acordou bastante tarde para o problema. Moçambique vai levar muitos anos a recompor-se e o perdão de metade da dívida não é solução. Há países que perdoaram tudo. O Governo Português deveria ter sido o primeiro a perdoar a dívida. Não o fez não sei porquê.
Mário Lopes – Alenquer
Foi uma grande catástrofe que aconteceu àquela gente indefesa. Acho que se deveria ter ajudado mais. O que aconteceu lá também poderia ter acontecido aqui. Nunca se sabe. Temos que estar mais solidários e em união com Moçambique, para que esses pessoas possam refazer as suas vidas o mais rapidamente possível.
Horácio Corado – Comandante Interino dos Bombeiros Voluntários de Alenquer
O que está a acontecer em Moçambique é bastante grave e lastimoso e pode acontecer em qualquer outro lugar, inclusive aqui junto a nós, embora aqui nós tivéssemos mais possibilidades de minorar os prejuízos duma catástrofe desta dimensão. Moçambique é um país bastante grande, com pessoas carenciadas e com poucos recursos. Os bombeiros portugueses têm ajudado no que podem. São requisitados pela Administração Interna ao Serviço Nacional de Bombeiros e este por sua vez recruta-os aos Corpos de Bombeiros. É nos bombeiros que eles vêem pessoas habilitadas para estas situações. Quanto à Campanha de Solidariedade, cá em Alenquer, correu bastante bem. A recepção foi boa perante a população e a colaboração foi espectacular. Tivemos uma boa participação. Em determinada altura, tínhamos uma sala cheia e tivemos que pôr as coisas no Pavilhão. Esteve aqui o Senhor Vereador da Protecção Civil, que colaborou bastante connosco. Colocou cá duas pessoas da Câmara que estiveram a separar o vestuário e em determinada altura, quando as coisas já estavam organizadas, o material foi transportado para uma determinada zona da Protecção Civil, em Lisboa, para depois ser transportada para Moçambique. Desconheço se está garantido o transporte desses bens para junto da população moçambicana.
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2000)
diretor do Jornal D’Alenquer
in Jornal D’Alenquer de 1 de Abril de 2000, p. 2 (Editorial)
hernani.figueiredo@sapo.pt
Olá, muito obrigado por visitar este espaço.
Espero que a sua leitura tenha sido do seu agrado.
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