Entrevista a… Mateus Carvalho, uma vida dedicada à comunidade

Entrevista a… Mateus Carvalho, uma vida dedicada à comunidade

01/03/2004 4 Por hernani



Mateus Carvalho, uma vida dedicada à comunidade

“Nasci numa vacaria e, em pequeno, a minha cama chegou a ser uma manjedoura”

Filho de Arsénio Carvalho e de Belmira da Conceição, Mateus Carvalho nasceu na Quinta da Mata, freguesia de Triana, em Alenquer, a 8 de março de 1923. É o mais velho de seis irmãos. Em casa não tinha cama, por isso dormia numa manjedoira em cima de uma esteira. Casou uma primeira vez a 5 de Setembro de 1943 e, como enviuvou em 1997, voltou a casar a 2 de Setembro de 1999. Tem uma filha, dois netos e dois bisnetos.

Tinha sete anos de idade, em 1930, quando começou a frequentar, até à 3.ª classe, uma escola que havia na povoação de Murganheira, traseiras da Quinta da Mata (Cheganças), local onde o pai trabalhava como cocheiro. Depois, em 1933, passou para a Escola de Alenquer, no Areal (ex-Celeiro Real). Foi fazer o exame da 4.ª Classe à Escola Conde Ferreira, onde hoje existe o Museu Municipal Hipólito Cabaço.

Fazia diariamente oito quilómetros a pé, por caminhos que no inverno eram de lama, pois o alcatrão só apareceu mais tarde. Como era bom aluno e o professor gostava dele, este ofereceu-lhe a possibilidade de dormir no chão da escola evitando assim aquela caminhada diária. O Professor Abreu oferecia-lhe o pequeno-almoço e o pai levava-lhe o almoço e o jantar.

Cedo começou a trabalhar. Ainda quando andava na escola ia para a estrada nacional apanhar o estrume dos cavalos, burros e bois que por ali passavam (eram os automóveis da época) para que o pai com esse estrume enriquecesse as terras onde estavam as sementeiras de favas, ervilhas e batatas para o sustento familiar. Também nesse período escolar ia fazer a vindima ao patrão do pai, tendo sido necessário fazerem, de propósito, um cesto mais pequeno, a condizer com o seu tamanho. Foi com o dinheiro ganho nesse período que comprou as suas primeiras botas; até aí andava sempre descalço.

Apesar de “distinguido” como bom aluno, não pôde continuar os estudos, pois tinha que trabalhar para ajudar no sustento da família, e arranjou um emprego de criado, em Alenquer, onde tinha à sua guarda um enorme quintal, que tinha de cavar, semear e regar com água transportada (com uma bilha) por si, da fonte pública. Este trabalho assegurava-lhe vinte escudos por mês e comida, o que para si não era suficiente, pelo que começou a acumular com um outro trabalho de lavar e lubrificar cinco automóveis, o que lhe acrescentou ao proveito mensal mais quarenta escudos. Esta tarefa durou até à sua entrada na Câmara de Alenquer, em 1942, quando tinha 19 anos.

Quando pensava que a vida estava melhor, a 6 de julho de 1943, a mãe suicidou-se por razões que ainda hoje se desconhecem, e o pai durou mais treze dias. Assim, Mateus Carvalho ficou a ser o elemento mais velho duma família de seis irmãos: três rapazes e três raparigas. Com a ajuda do presidente da Câmara conseguiu internar os dois irmãos mais novos na Casa Pia, quando tinham respetivamente 4 e 6 anos de idade, e que, completos os respetivos cursos, regressaram a casa, onde ficaram até se casarem.

Mateus Carvalho, foi funcionário da Câmara Municipal até 1985, quando se aposentou. Em acumulação exerceu durante muitos anos o cargo de escrivão de Execuções Fiscais. Paralelamente aos seus deveres profissionais, dedicou a maior parte da sua vida à causa pública: foram as coletividades; foram as organizações de festas de beneficência, como corridas de toiros, provas desportivas, espetáculos de variedades, cinema e teatro, cortejos de oferendas, batalhas de flores, julgamentos de bacalhau, concursos de marchas populares; foi o movimento da Igreja, onde ainda hoje se mantém. Conversar com Mateus Carvalho foi fácil, pois as perguntas quase que não foram necessárias.

A Alenquer de hoje é aquela com que sempre sonhou?
De maneira nenhuma. Gostava de ver a “minha” Alenquer mais bonita. Nós vamos a outras terras e ficamos encantados com o que vimos. É uma pena o rio estar como está. Podiam plantar mais dióspiros, pois os que lá estavam a pouco e pouco foram secando e nunca foram substituídos. É uma pena não pormos a nossa vila mais bonita.

Como mais flores, quer o senhor dizer. Como as das célebres “batalhas de flores”!…
É verdade. Agora não há as “batalhas de flores”, os “cortejos de oferendas”, os “julgamentos do bacalhau”, as “marchas populares”, acontecimentos que tanta animação dava à vila”….

Tudo “animações” de que o senhor era o grande impulsionador!…
O primeiro cortejo de oferendas foi da responsabilidade do Dr. Horácio Ferrão e do Armando Pinto Morais Ferreira. Comecei logo de pequeno a andar com eles, a ajudar. Por fim, também tinha responsabilidades na sua realização. O cortejo de oferendas era para a Misericórdia e para os Bombeiros; a batalha de flores era para a SUMA. Quanto ao julgamento do bacalhau, é mais antigo: foi uma ideia que o Pili e o Salomão de Lemos Figueiredo trouxeram de Alhandra, mas a partir de 1974 colaborei em todos os julgamentos do bacalhau, e também em todas as batalhas de flores que se realizaram em Alenquer. Sobre as marchas, lembro-me dum ano que a SUMA organizou um concurso.

Os cortejos de oferendas requeriam equipas muito numerosas. Como conseguiu arranjá-las?
Agora é mais difícil reunir um conjunto de boas vontades para trabalhar para a comunidade. Hoje é tudo mais calculista, mais materialista. O dinheiro sobrepõe-se aos valores morais. Mas, naquela altura, todos queriam ajudar, todos eles sabiam que o seu esforço também revertia em benefício próprio. O cortejo de oferendas exigia uma organização muito complexa, e só esse espírito de entreajuda permitiu reunir cerca de cem pessoas, que eram divididas por subcomissões. Assim, foi possível organizar oito cortejos de oferendas, uns a favor da Misericórdia, de que eu fazia parte, outras a favor dos Bombeiros de Alenquer.

Ainda foi dar uma ajuda aos nossos vizinhos…
O cortejo de oferendas de Alenquer alcançou tal projeção que a direção do Hospital de Vila Franca de Xira pediu a minha ajuda. E eu lá disponibilizei a minha experiência e ajudei-os na realização do seu cortejo de oferendas. Ficaram de tal modo satisfeitos com o meu trabalho que no dia da inauguração do novo Hospital Reynaldo dos Santos, eu fui o convidado de honra.

Também foi “marchante”!…
A “marchar” nunca estive, mas a SUMA e a Comissão pró-Beneficiência fizeram uma parceria para um concurso de marchas populares, oriundas de todo o concelho, e o João Baptista Clemente, na altura presidente da SUMA, o Renato e eu, tomámos conta do recado e lá organizamos o concurso, no Parque Vaz Monteiro, em Alenquer, durante alguns fins de semana, pois o número de marchas inscritas a isso exigiu. No fim ainda ia dando alguma confusão, visto todos quererem ganhar, mas só a uma isso foi possível. O Salomão de Lemos Figueiredo foi o ensaiador de várias marchas, pois como era mais conhecido no concelho, a grande maioria pediu-lhe para ser o “seu” ensaiador. Das “suas” marchas, uma foi a vencedora, o que desagradou às outras. Como agora também acontece, ninguém gostava de perder…

E o cinema também tinha uma animação diferente da de hoje!…
De início, no tempo do cinema mudo, era uma barraca velha, sem condições. Pertencia ao Matos Coelho e, depois, passou para uma firma que era do Mateus Grilo e de mais dois ou três. Depois, o dr. Horácio Ferrão e o seu irmão, Armando, compraram aquilo. Na altura os bilhetes custavam dois escudos. Mais tarde, o João Clemente Dinis, da Espiçandeira, comprou a “barraca”e construiu um cinema novo, que foi inaugurado em 1950.  Aqui, o balcão já custava dez escudos, mas o cinema em Alenquer nunca foi grande negócio.

Chegou a ser o “encarregado” do cinema.
Sim, e também colaborava na escolha dos filmes. Também contratei os empresários Marques Vidal e Igrejas Caeiro para trazerem alguns espetáculos a Alenquer. Mas a minha primeira função foi como ajudante de bilheteiro e, mais tarde, bilheteiro. Foi uma época boa, antes da televisão dar cabo de tudo. Também trabalhavam lá o António Bento (com a máquina), e como porteiros, o Santos, o Salvador Franco, o Jorge Silva (Jorge Vadio) e, mais recentemente, o Amílcar Coelho (Micas). Em 1975, quando estava novamente em ruínas, foi vendido à Câmara.

Destas atividades tão multifacetadas, o Movimento da Igreja para si é o mais importante. Porquê?
Em primeiro lugar, porque sou um católico “crente”, pois sou batizado, crismado, casado, tenho um curso de cristandade e uma vivência diária segundo as regras da Igreja Católica Apostólica Romana. Em segundo lugar, este movimento proporciona-me trabalhar em prol dos mais necessitados. Por isso, já fui secretário do Jardim de Infância da Paróquia, fui membro da Sociedade São Vicente de Paulo, colaborei no Lar de Dia e fui fundador da Colónia de Férias para Crianças. Tudo “vocações” dirigidas para as crianças, para os idosos e para os mais carenciados.

Falando da Colónia de Férias. Como começou esse movimento?
Um projeto muito aliciante para mim e para a minha mulher, e para mais sete casais. Tudo começo quando, em 1968, à saída de uma ultreia, juntámo-nos e conversámos sobre a criação da colónia de férias para as crianças. Inicialmente a ideia era servir só as duas freguesias da vila, mas acabou por se alargar ao resto do concelho. Tivemos sorte, porque hoje já não seria possível fazermos aquilo. Antes da existência desta colónia de féria, a Comissão Municipal de Assistência mandava as crianças para a Colónia Balnear Infantil do Século, que este jornal e o Governo Civil tinham no Estoril. Eu é que dava a volta ao concelho a recolher os miúdos que estavam inscritos para levá-los a Lisboa, e depois ia lá recolhê-los.

Quem beneficiava da Colónia?
Durante o período dos três meses de férias do Verão, julho, agosto e setembro, as duzentas crianças do concelho que beneficiavam da estadia na Colónia de Férias, eram distribuídas por turnos de quinze dias. O último turno era dedicado aos idosos do Lar da Misericórdia.

Quem suportava esses custos?
Esta colónia era mantida apenas pela generosidade de muitos benfeitores, proprietários, comerciantes e pessoas individuais, como o teu tio João (João de Lemos Figueiredo), que todos os anos era sempre dos primeiros a dar o donativo. O Governo Civil também participava. A casa, na Praia Azul, em Santa Cruz, era cedida, gratuitamente, por uma Alenquerense. A Quinta de Ota tinha uma horta propositadamente para nós. Íamos lá apanhar hortaliças e levávamos sempre uma carrinha cheia. Era muita gente a colaborar e as crianças viviam lá muito bem. Arranjámos algum dinheiro que até deu para comprarmos uma carrinha nova.

Quando acabou a Colónia, e porquê?
A seguir ao 25 de Abril de 1974 tudo foi um bocado mais difícil,  e alguns casais começaram a desmotivar, pois acabamos por ficar só três ou quatro. Em 1975 decidimos acabar com a Colónia, pois não era mais possível reunir as boas vontades necessárias para continuarmos com tal projeto.

Sobre a homenagem que alguns amigos lhe vão prestar. Quer comentá-la?
Julgo que não sou merecedor dela. Tenho que agradecer ao meu amigo João Mário, grande impulsionador desta festa que se vai realizar no próximo dia 8 de março, na Quinta da Provença.

PERFIL:
Mateus Carvalho
Nasceu na Quinta de Meca, Freguesia de Triana, em Alenquer, a 8 de março de 1923. É o mais velho de seis irmãos. Em casa não tinha cama, por isso dormia numa manjedoira em cima de uma esteira. Casou, uma primeira vez a 5 de setembro de 1943, e como enviuvou em 1997, voltou a casar a 2 de setembro de 1999. Tem uma filha, dois netos e dois bisnetos.

Bombeiros Voluntários de Alenquer

    • Secretário da direção.

 

    • Colaborou nos cortejos de oferendas.

Câmara Municipal de Alenquer
1942: assalariado.
1943: zelador de obras (entra no Quadro).
1945: contínuo e, mais tarde, arquivista.
1974: a seu pedido, volta a zelador. Mais tarde, passa a fiscal de obras e, finalmente, Fiscal Principal, lugar que ocupou até à data da sua reforma.
1985: aposentação.
Percorreu praticamente todas as secções da Câmara Municipal, desde as secções de obras, Matadouro, Aferições de Pesos e Medidas, Datilografia, Mercado Municipal e Contabilidade. Era o responsável no período de férias do Chefe de Contabilidade. Para além de acumular o lugar de Secretário de todas as comissões organizadoras das feiras anuais promovidas pela Câmara, que se realizavam em setembro. A já referida dedicação às causas municipais, conjuntamente com a sua alta capacidade profissional, levou-o a ser louvado por uma inspeção administrativa do Ministério do Interior, que aliás, propôs à Câmara um aumento de vencimento.

Centro Paroquial de Alenquer
Fez a primeira comunhão quando tinha 19 anos, o Crisma em abril de 1952.
Frequentou um Curso de Cristandade de novembro de 1957, e a partir daí esteve sempre ligado à Paróquia como seu colaborador ativo.
Trabalhou em feiras, vendas de Natal e Páscoa.
Foi encarregado de datilografar e fotocopiar os cânticos  para as missas dominicais e as leituras e evangelhos para as ultreias dos cursos de Cristandade.
Muitas vezes ajudou à missa.
Era quem transportava o Coro.
Organizou vários espetáculos de cinema e variedades.

Cinema de Alenquer
1937-1975: 38 anos de serviço, primeiro como ajudante de bilheteiro, depois como bilheteiro, ainda na contratação dos filmes. Por fim, encarregado, quando a exploração passou para uma empresa de Lisboa.

Comissão de Festas de Verão de Alenquer
1969-1974: Foi secretário desta comissão, que acabou com o 25 de abril de 1974.

Colónia de Féria para Crianças
Entre 1968 e 1975, ele, a esposa e mais sete casais. Mantiveram-na em atividade.
O grupo era composto por António Calmado, José António Franco, José Júlio, José Manuel Inácio, Manuel Candeias, Manuel Severino, Mateus Carvalho e Orlando Nascimento, e respetivas esposas.

Comissão Pró-Beneficência de Alenquer
1946-1955: Fundador. Foi Secretário durante toda a sua existência. Com a extinção desta comissão, surgiu em 1958 a Liga dos Amigos de Alenquer. Organizador de festas e outros eventos a fvor do Orfanato, como as “Festas do Orfanato”, espetáculos de variedades, corridas de touros, etc..

Escondidinho da Feira
Fundador do restaurante que a Paróquia mantém na Feira de Ascensão e na Feira do Vinho e do Cavalo, para angariar fundos para a conservação das igrejas da vila.

Jardim Infantil da Misericórdia
Foi secretário, chegando inclusive a fazer o transporte domiciliário das crianças da instituição.
Colaborou na sua criação até à abertura do Infantário da Santa Casa da Misericórdia.

Procissão do Senhor dos Passos
Faz parte da organização, desde 1968.

Rancho Folclórico de Alenquer
1959: Membro da comissão fundadora e secretário da direção. Também foi apresentador do rancho.

Santa Casa da Misericórdia de Alenquer
1989-1994: Fez parte da Mesa Administrativa, sendo também o encarregado do Centro de Dia.
Organizou diversos cortejos de oferendas.

Sociedade São Vicente de Paulo
Foi fundador da extinta Sociedade de São Vicente de Paulo, entidade vocacionada para a assistência aos mais carecidos, hoje função desempenhada pelos escuteiros.

Sociedade União Musical Alenquerense
1960-1974: Exerceu vários cargos diretivos.
A partir de 1974, colaborou nas batalhas de flores e nos julgamentos do bacalhau.

Sporting Clube de Alenquer
1946-1964: Exerceu vários cargos diretivos.



Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2004)

diretor do Jornal D’Alenquer

in Jornal D’Alenquer de 1 de Março de 2004, p. 24 e 25


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