“Flâneur por um dia

“Flâneur por um dia

25/05/2014 0 Por hernani

Flâneur por um dia

” Confesso que fiquei receoso quando saí para a rua; perdido mesmo. Que máscara deveria colocar para parecer incógnito perante uma comunidade onde todos se conhecem? E ao observá-la, vi-a como uma parcela contida numa sociedade que se vê depravada por ela mesma, e senti uma imensa revolta pela minha impotência para alterar aquele rumo.”

Charles Baudelaire

O flâneur é uma criação literária de Charles Baudelaire, o considerado poeta da Modernidade. Ele até foi o primeiro flâneur da história, numa sociedade opressora e tão orgulhosa da própria civilização, como era a sociedade parisiense oitocentista sob o governo de Napoleão III, no seu momento da reforma urbana.

Na época de Baudelaire, Paris era a capital da utilidade fútil. Os seus cafés, bulevares e salões eram frequentados por uma sociedade cinzenta desejosa em ver o seu rosto refletido em tudo o que podia comprar ou construir.

A derrota operária da comuna de Paris de 1848 deixou a população perplexa perante a falência da sua revolução. A realidade foi inesperadamente fragmentada, significando para os habitantes um mundo em ruínas. Símbolo da vanguarda da sua época, Paris deixava transparecer a perda da sensibilidade dos seus habitantes.

Honoré de Balzac dizia que, “um dos espetáculos mais horripilantes do mundo é sem dúvida olhar para a população parisiense na sua totalidade: é terrível observar este povo enfezado, amarelo, desmoralizado”.

E Baudelaire, o poeta da Modernidade, viveu a experiência de ser tão-somente um habitante de um grande aglomerado urbano em substituição da sua identidade individual. Diluído no viver ondulante desse conviver coletivo, Baudelaire conseguiu permanecer incógnito. Para ele, a vida parecia perder todo o sentido. Já não era tão evidente desvendar a justa proporção entre as pessoas e as coisas. Charles Baudelaire tentara resgatar os objetos e as pessoas perdidas na confusão da grande cidade. O poeta experimentara a angústia da desordem e a ânsia do sentido.

Para ele, uma invasão da paisagem urbana não deveria ter propósito nem direção. Ele saudava aqueles que mergulhando na multidão, recolhiam impressões e logo corriam para casa a jorrar no papel tudo o que observavam. Ele foi o primeiro flâneur da história, o flâneur que passava a maior parte do seu tempo apenas a olhar a representação urbana. O flâneur que era o “botânico do asfalto”, nas palavras de Walter Benjamin.

Este texto serve como introdução ao trabalho de campo que me foi proposto: um dia, ser um “flâneur” nas ruas de Alenquer. Não com as literais condicionantes baudelairianas mas com um sentido de comunicação. Descobrir como é que as pessoas comunicam, primeiro consigo próprias, depois com o seu semelhante, por fim com a sociedade em geral. Principalmente aquelas pessoas que tivessem necessidade de um modelo de comunicação não convencional.

Confesso que fiquei receoso quando saí para a rua com tal propósito; perdido mesmo. Que máscara deveria colocar para parecer incógnito perante uma comunidade onde todos se conhecem? E ao observá-la, vi-a como uma parcela contida numa sociedade que se vê depravada por ela mesma, e senti uma imensa revolta pela minha impotência para alterar aquele rumo.

Nisto senti-me salvo, liberto deste estrangulamento interior. Ao longe avistei uma pessoa conhecida que parecia ser a solução para a minha dificuldade. Um alenquerense que a parte da sua vida que eu minimamente conhecia ia ao encontro do que procurava. Senti-me como se tivesse encontrado o “tesouro perdido”. E essa pessoa era a portadora da chave para chegar a essa riqueza. Só faltava a chave passar para as minhas mãos.

Como Baudelaire preconizou para o seu flâneur, eu também corri para casa e transpus para o papel aquela “visão”. E logo comecei a traçar a estratégia para chegar à chave do tesouro.

Afinal foi fácil, pois o nosso bom amigo Mário Bacelar disponibilizou-se não só a fornecer a chave, como a ser ele próprio a abrir o “tesouro”.

Foi uma conversa bem agradável. E aí ficamos a saber que, um dia, dois jovens cruzaram o seu olhar consentido, e logo bateram forte os seus corações. Daí, até iniciarem uma ligação mais consistente, o tempo floriu breve. O Cupido batera forte. E assim, se auto presentearam com uma relação que só a morte poderia descontinuar.

Porém, após vários anos duma união maravilhosa algo aconteceu. E um dia (há sempre um dia na nossa vida…), Maria Cândida queixou-se duma dor de cabeça, algo banal entre qualquer ser humano. Análises mais análises, médicos mais médicos e nada que chegasse a uma qualquer conclusão de qual era a origem das dores de cabeça. A doença agravou-se até à cegueira.

O amor, em parte, ultrapassou este problema: Mário Bacelar resolveu pedir a mão da sua amada, mesmo que a Maria Cândida estivesse cega, irreversível. Não olhou às previsíveis dificuldades que daí podiam surgir, porque tinham uma vida pela frente para enfrentar, A DOIS.

Casaram e desta relação nasceram duas filhas – duas lindas meninas – que hoje são mulheres. Quantos trabalhos, quantas canseiras não tiveram que ultrapassar para a sua educação e o seu bem-estar!…

Maria Cândida frequentou uma escola de cegos, em Lisboa, onde aprendeu a arte de viver a sua nova situação.

Durante um determinado tempo, ausentava-se de sua casa e só aqui regressava aos fins-de-semana para se juntar ao seu marido.

Logo que terminou o curso, regressou definitivamente ao lar onde se fez uma ótima dona de casa. Conhecia todos os cantos à casa e até a existência da mobília de cada sala. Inclusivamente sabia o local exato de cada peça de roupa e loiça do agregado familiar: marido e filhas. E mais: sabia os segredos do tricot. Um dia, alguém reparou que a Maria Cândida até para se pentear usava o espelho da casa de banho. Esta deu-lhe uma boa resposta: “não iria fazer isso na sala de jantar ou na cozinha”.

Foi com fé, com esperança e com generosidade que o amor triunfou entre eles, e Mário Bacelar e Maria Cândida são o exemplo visível para todos os casais.

Como o nosso curso versa a SOCIEDADE e a COMUNICAÇÃO, e como o meu trabalho de campo, foi ser “FLÂNEUR POR UM DIA” à procura dum modelo de comunicação interpessoal divergente, peço ao nosso bom amigo Mário Bacelar, que no discurso direto, nos diga como foi essa comunicação feita pela sua esposa e por ele mesmo. Primeiro consigo próprios, depois com as outras pessoas, por fim com o ambiente e os equipamentos.

Para já, para mim, Maria Cândida e Mário Bacelar são ambos autênticos HERÓIS DA PÓS-MODERNIDADE.



©Anacleto Gonçalves (2013)
Aluno da UTI de Alenquer, curso “Sociedade e Comunicação”

 

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