De Sileno a Manuel Gírio

De Sileno a Manuel Gírio

01/04/2000 0 Por hernanifigueiredo

Março, mês do Teatro

De Sileno a Manuel Gírio

Manuel Gírio a observar a imagem de Palmira Bastos

Manuel Gírio a observar a imagem de Palmira Bastos

Gil Vicente foi o nosso maior autor teatral, mas parece que não foi o criador do teatro português, pois existiu um teatro medieval, de que ele, com muitos outros, foi o seu último representante

O que nos recorda a palavra “teatro”? A arte de representar; a arte de compor obras dramáticas; lugar onde se representam obras dramáticas; colecção de obras dramáticas de um autor ou de autores de um país – o Teatro de Gil Vicente, o Teatro de Garrett, o Teatro Nacional (teatro com personagens, temas e teses nacionais. Neste caso Almeida Garrett disse mesmo que “…nunca chegou a haver teatro; o que se chama “teatro nacional”, nunca; até nisso se parece a nossa literatura com a latina, que também o não teve…”).

A palavra teatro também poderá significar fingimento e hipocrisia – segundo Eduardo Prado Coelho, “…nenhuma arte parece tão próxima do quotidiano…” e mesmo Sartre explicou que até “…o próprio empregado de café gosta de fazer o seu teatro quando se apresenta como o bom empregado de café…”.

Muitos historiadores entendem que a actividade teatral não é um vector proeminente na cultura portuguesa, nem no plano do texto, nem no plano do espectáculo. Isso não é impeditivo para que o teatro seja muito rico em expressões representativas, destacando-se: a “comédia“, peça em que se põe em acção, de um modo jocoso, os costumes, caracteres ou factos da vida social; o “drama“, composição teatral sobre assuntos sérios, meio-termo entre a tragédia e a comédia e aborda, geralmente, temas da vida comum, desdobrando-se entre o patético e o comovente. A arte dramática teve origem religiosa-cultural. A sua evolução realizou-se a partir da literatura e emancipou-se progressivamente da religião; a “farsa“, pequena ópera em um acto, peça cómica de carácter burlesco, de pouco enredo e poucas personagens, descende do chamado “arremedilho” que já era uma farsa em mímica, conhecida no tempo de D. Sancho I. A farsa ganhou entre nós grande expressão teatral com o aparecimento de Gil Vicente; a “tragédia“, género originário da Grécia Antiga, cuja acção é dramática, tendo desfecho funesto, isto é, termina com a morte.

Fazendo uma incursão pela Mitologia Grega relembremos SILENO, monstro mitológico sátiro, metade homem, metade bode, que com frequência era representado, cavalgando num burro e aparecendo então como um homem robusto, de idade madura, tendo nos seus braços o deus Baco. Os artistas enobreceram este acto, representando Sileno como protector de BACO.

O primeiro lugar onde se representaram peças teatrais foi o anfiteatro antigo, onde todos os habitantes de Atenas, à excepção dos escravos, eram admitidos a assistir às representações. Chegaram a assistir 30 a 35 mil pessoas, e durante os espectáculos distribuíam-se pelos espectadores, figos, guloseimas e outros pequenos presentes.

Os papéis das mulheres eram representados por homens, onde as máscaras constituíam parte importante do equipamento dos actores. No teatro grego, o autor representava o papel principal e dirigia o coro. Terminadas as representações, uma comissão de dez membros, tirados à sorte entre os espectadores mais prestigiados, e depois de submetidos a juramento, conferia o prémio ao autor trágico ou ao autor cómico, cujas peças tinham sido julgadas como melhores. Também se conferiam prémios aos actores que desempenhavam o papel principal. Na Grécia, os actores eram tidos em grande estima.

Não podemos falar do teatro da Grécia Antiga sem forçosamente nos debruçarmos sobre o papel impar que tiverem os “três máximos poetas trágicos gregos“: Ésquilo, Sófocles e Eurípides.

Ésquilo (525 a.C.), irmão de Cinegiro, herói de Maratona, foi um dos maiores poetas que existiu. Escreveu oitenta peças, trágicas ou dramas líricos, sobre antigos mitos: teogonia, ciclo troiano, história dos argonautas, lendas tebanas e argianas. Criou o teatro, apresentando o drama ao quadro lírico, colocando um segundo e um terceiro actor na frente do coro. Das suas obras destacamos SETE CONTRA TEBAS e PROMETEU ACORRENTADO (traduzido para português);

Sófocles (495 a.C.), estreou-se como dramaturgo em 468 a.C. quando se notabilizou como rival de Ésquilo, onde ganhou um primeiro prémio com Triptolemo. A partir daqui teve a supremacia no teatro, até ao aparecimento de Eurípides (441 a.C.). Escreveu cento e quinze peças e as suas obras são consideradas como as de mais perfeita construção no teatro grego: Ajax, Antígona, Electra, Édipo Rei (traduzido para português), etc.

Eurípides (441 a.C.), o último dos três grandes poetas trágicos gregos, tinha 25 anos quando apresentou a sua primeira peça de teatro, As filhas de peleus, mas só alcançou o terceiro prémio. Só passados catorze anos conseguiu um primeiro prémio, que se repetiu mais algumas vezes. As suas peças nas lendas de Tebas, de Argos e nas histórias de Hércules, representavam a nova moral social e política. Distinguiu-se dos seus trágicos precedentes pelo facto de dar muito maior importância às experiências e sentimentos dos indivíduos do que aos dos seres lendários que pertenciam ao passado histórico. Deixou 92 peças de teatro: Medeia, Hipólito, Bacantes, Efigénia, etc.

O Teatro Romano, copiado do grego, difere deste por em nada ter com a religião. A comédia e a tragédia grega, depois de introduzidas em Roma, degeneraram em dança e pantomina satírica e a situação social do actor romano nunca se aproximou da dignidade do seu precedente grego. Em Roma, as companhias eram constituídas, na sua maioria, por escravos e a admissão de mulheres à cena, tornaram a profissão geralmente desprezada.

Com a invasão lombarda (sec VI), os teatros foram destruídos. No entanto, não deixou de haver actores. Os bárbaros abastados, tinham-nos a seu soldo para diversões privadas, onde cantavam os feitos dos chefes em narrativas épicas; os actores menos afortunados meteram-se à estrada e tornaram-se nómadas (fizeram-se saltimbancos, dançarinos, cantores, acrobatas, etc.). Eram conhecidos por “jograis” e estes com os “goliardos” (estudantes que viajavam de universidade em universidade) difundiram o teatro por toda a Europa.

Mais tarde, o teatro renasceu, uma vez mais, da religião, agora da liturgia cristã. No século XII, havia representações teatrais dentro das maiores igrejas, mas quando as multidões eram mais numerosas do que os templos podiam conter, passou-se a representar nos refeitórios e ao ar livre, à sombra das próprias igrejas, onde a encenação atingiu grande complexidade e onde a realização de um “mistério”, exigia a colaboração de toda a cidade, misturando-se para isso todas as classes sociais em torno do clero, das confrarias e das corporações.

Em Portugal, a encenação surge com o aparecimento das primeiras farsas e servia de contraponto às guerras, (conquistas e derrotas), que eram, além da agricultura e da vida religiosa, a ocupação primordial da época. D. Sancho I tinha bobos na sua Corte; A Coroação do Divino Espírito Santo, misto de ritual religioso, de promessa real, de Mistério e de festa aristocrática, que a Rainha Santa Isabel promoveu em Alenquer, apesar de ter sido um acto intencional, foi uma manifestação de cariz teatral; D. Afonso III, tinha por hábito ser intérprete activo em encenações teatrais, nos seus serões; D. Pedro I, costumava misturar-se com o povo em manifestações teatrais; D Fernando, irmão do rei D. Duarte, apareceu como figurante numa encenação durante as festas do casamento da sua sobrinha, filha do rei; Foi famoso o “Entremis do Anjo”, composto por D. Francisco de Portugal, apresentado em Évora, pelo casamento do príncipe D. Afonso e onde o rei D. João II, o Príncipe Perfeito, figurou de “Cavaleiro do Cisne“.

Por toda a Europa o teatro medieval mostrava-se bastante uniforme e começaram a surgir as primeiras companhias de actores. A mais famosa foi ã “Confrérie de la Passion“, em França em 1404. Durante o Renascimento, na Itália, companhias de jovens, mais ou menos integrados na Igreja, representavam os “milagres” ao passo que os actores ambulantes criaram a “Commedia dell’Arte“. O sucesso foi tanto que os Cómicos de Arte começaram a ser solicitados do estrangeiro: Entrou em França nos anos 1560, em Espanha em 1570, em Portugal, antes do fim do século.

Em França, em 1646, aparece João Baptista Poquelin, conhecido para a posteridade como Molière, “o maior cómico de todos os tempos”, que considera “o estudo da natureza humana pela observação das populações provincianas”, o de mais valor que conseguiu, durante todos os anos de trabalho ambulante. Deixou-nos, entre muitas outras comédias, “L’École des femmes”, “O Avarento”, “O Médico à Força”, “Ciúmes de Mascarado”, “O doente de cisma”, etc.

Gil Vicente foi o nosso maior autor teatral, mas parece que não foi o criador do teatro português, pois existiu um teatro medieval, de que ele, com muitos outros, foi o seu último representante. Gil Vicente deve ter disposto de “grandes recursos cénicos” e de uma “indumentária espaventosa e a rigor, originada dos sumptuosos guarda-roupas reais”. Entre muitas obras, deixou-nos Um Auto de Vicente, O Alfageme de Santarém, Auto da Sibila Cassandra, Auto de Mofina Mendes, Farsa de Inês Pereira, Triunfo do Inferno, Monólogo do Vaqueiro, Auto da Índia, etc.

Se, para alguns, Gil Vicente foi o criador do teatro português, Almeida Garrett foi o seu reformador. Escreveu muito em todos os géneros, renovou a língua, lançou as bases do moderno português literário, criou o Conservatório e renovou o teatro. Em 29 de Setembro de 1821 estreia a peça Catão, em que foi seu autor e intérprete. Deixou-nos também, entre muitos outros trabalhos, Frei Luís de Sousa (1843), texto de carácter histórico, arrancado à sensibilidade popular e ao sentimento patriótico.

Poderemos considerar como textos trágicos mais importantes do teatro português, “A Castro” de António Ferreira (1558) e “Frei Luís de Sousa” de Almeida Garrett (1843). Outros textos igualmente importantes, “A Ceia dos Cardeais” de Júlio Dantas (1902); “O Gebo e a Sombra” de Raul Brandão (1923); “D. João e a Máscara” de António Patrício (1924), “Tá-Mar” de Alfredo Cortês (1936); “Benilde ou a Virgem-Mãe” de José Régio (1947)

A Comédia camoniana “Anfitriões e El-rei Seleuco“, encontrará no séc. XVIII um autor de eleição, António José da Silva, o Judeu com as Guerras do Alecrim e Manjerona.

No Teatro de intervenção, são importantes “A Promessa” (1957) de Bernardo Santareno; “O Crime de Aldeia Velha” (1959) de Bernardo Santareno; “Os Pássaros de Asas Cortadas” (1959) de Luiz Francisco Rebello; “O Render dos Heróis” (1960) de José Cardoso Pires e “Felizmente, Há Luar” (1961), de Luís de Sttau Monteiro.

Teatro significa também Manuel Gírio, pelo muito que fez e por aquilo que se espera ainda venha dar à causa, mas em Alenquer, para se falar de teatro, não o podemos fazer com objectividade sem falar também de Salomão de Lemos Figueiredo, Manuel Gomes Gírio (Píli), Simão Batoreo, Victor Santos, Horário Pereira e António Catráu, para citar só alguns dos que já nos deixaram.


 

Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2000)

diretor do Jornal D’Alenquer

in Jornal D’Alenquer, 1 de Abril de 2000, p. 11 e 12

 

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