A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura (vi): Da Real Fábrica de Papel de Alenquer a Lisboa e ao seu termo

A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura (vi): Da Real Fábrica de Papel de Alenquer a Lisboa e ao seu termo

16/05/2019 0 Por hernani

A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura

Das suas origens ao séc. xx (vi)

Da Real Fábrica de Papel de Alenquer a Lisboa e ao seu termo

A nova fábrica, conhecida como Real Fábrica de Papel de Alenquer, ficou a dever-se, sobremaneira, ao forte empenho do ministro D. Rodrigo de Sousa Coutinho, já que era «notória a falta, que há de bom papel de todas as qualidades neste reino e seus domínios, e o grave prejuízo, que sofre a pública economia pela exportação de avultadas somas para o negociar», tal como consta no Decreto fundador de 15 de Julho de 1802[1].

Também aqui, a escolha do local recaíu sobre Alenquer «(…) por informações exactas, e repetidas, e de pessoas muito inteligentes, que há na vila de Alenquer junto à ponte da Couraça entre o Rio e o Moinho denominado d’ElRei, um lugar muito acomodado para se levantar uma boa Fábrica do sobredito papel, concorrendo águas abundantes, perenes e sempre limpas», como consta do mesmo Decreto.

Escolhido o local e ordenada a iniciativa, de acordo com o instrumento fundador, de imediato se procedeu à avaliação dos terrenos e à sua expropriação ou adjudicação a favor da Directoria Geral[2], disso sendo encarregado o Corregedor da Comarca da vila, a requerimento do Desembargador Domingos Monteiro do Amaral.

Voltando a Ratton e à sua obra, revela-nos esse industrial que em conversa pessoal com D. Rodrigo de Sousa Coutinho este o colocou ao corrente do processo e o discutiram, pedindo-lhe o Ministro que se interessasse por ele acompanhando Domingos Amaral e outros na sua visita a Alenquer para examinar o sítio escolhido.

Ratton escusou-se desse encargo alegando negócios e ocupações, contudo mais profundas deveriam ser as razões, como nos deixa perceber uma afirmação sua sobre a pessoa do Desembargador, logo nomeado Conservador da futura fábrica «com o ordenado de 1.200.000$000 réis anuais e 600.000$00 réis para as despesas das jornadas», autêntico job for the boy como hoje se diz. Sobre isso, desabafou Ratton:

«Tout flatteur vit aux dépens de celui qui l´ecoute; La Fontaine[3]Se este Desembargador entendia alguma coisa de fábricas de papel não sei; mas o que se vê é que sabia bem como se devem estabelecer lugares para conservadores, fosse ou não bem sucedida a empresa a respeito dos sócios»[4].

E já que falámos em “sócios” torna-se oportuno revelar qual o sindicato, ou sociedade de conhecidos capitalistas da praça de Lisboa que se disponibilizaram para financiar o empreendimento. Foram eles: Joaquim Pedro de Quintela, Jacinto Fernandes Bandeira, António Francisco Machado, José Pinheiro Salgado, João Pereira de Sousa Caldas, Francisco Manuel Calvet, Pedro Bettamio e Sebastião António da Cruz Sobral, a fina flor do contrato, tabaqueiros como então se dizia com algum acinte, sendo que o último, Sebastião António da Cruz Sobral afirmou-se, na realidade, como o grande entusiasta da obra, a verdadeira “alma do negócio”, chegando a adiantar de seu bolso importantes verbas para que a fábrica se concluísse.

Vinte e quatro foram as condições impostas pela sociedade ao Ministério, as quais, tendo sido aceites, ficaram consagradas no Alvará assinado no dia 2 de Agosto de 1802 pelo Príncipe Regente D. João, instrumento pelo qual seria, também, nomeada a Direcção da fábrica que ficaria a cargo de Sobral, Machado, Caldas e Calvet.

Vinte e cinco anos, tal como consta de um parecer do Real Erário, foi o prazo estipulado para reembolso do capital investido, ou, como ficou escrito, «o tempo pelo qual deva a Companhia aproveitar os lucros (…)»[5].

Paralelamente a todo este processo que temos vindo a descrever, decorreu a planificação da obra e a elaboração do projecto relativo à fábrica em todas as suas vertentes, tendo sido esse consignado ao arquitecto José Terésio Michelotti que, em carta endereçada ao Príncipe Regente, deixa transparecer todo o empenho que o Desembargador Sobral, em sintonia com o desejo de D. Rodrigo de Sousa Coutinho, colocou no projecto. Escreveu ele:

«O sr. Conselheiro, e comendador Sebastião António da Cruz Sobral manifestou o seu ardente desejo, de que o nosso edifício não fosse uma imitação servil, para assim ser mais atendível na Real Presença de sua Alteza (…)»[6].

E não o foi. Não o foi nas suas duas monumentais naves separadas por um imponente corpo central, nas represas, nos seus mecanismos hidráulicos e máquinas que, no dizer de um viajante francês, Adriano Balbi, faziam dela uma grande fábrica papeleira que trabalhava à moderna[7].

A sua construção teve início no dia 14 de Março de 1803, e, em 1805, ainda as obras não estavam concluídas, como se infere de um ofício de Cruz  Sobral a António de Araújo de Azevedo[8] solicitando mais tropa para Alenquer porque nas obras em curso, vindo o Verão, aumentaria o número de escravos argelinos nelas empregue, adiantando ainda as seguintes razões que nos permitem concluir que, apesar de tudo, a fábrica já laborava:

«(…) nas presentes circunstâncias ainda se faz mais preciso por se estar fabricando naquela Fábrica papel com certas marcas para a reforma da moeda papel que é mais um obstáculo ao vício de que é susceptível»[9].

Deixemos por agora a fábrica de Alenquer ensaiando os seus primeiros passos, porque necessária se torna uma referência à cidade de Lisboa e seus arrabaldes, onde, no virar de século, nasceram, também, algumas pequenas fábricas que produziam, na generalidade, papel de má qualidade, papel pardo ou de embrulho que o comércio local consumia. Foram elas a de Bernardo José da Costa e Joaquim Rodrigues Chaves & C.ª na Qt.ª do Loureiro, Ribeira de Alfama, erigida em 1796, a da Calçada do Duque que em 1813 pertencia a Francisco José Moreira, a da Calçada do Telhal que na mesma data era de José António Freire, uma outra já fora de portas, em Benfica, que, também em 1813, era de José Duarte (seria este o mesmo Mestre do engenho do Quintela, na Ribeira do Papel, que se dirigiu à Junta solicitando autorização para nesse local se estabelecer?) e a do Beco da Bebedola, Carreirinha do Socorro de Francisco Joaquim Pereira e Sousa e António Patrício (vindos da Ribeira do Papel) instalada em 1810/1.

Pelo Inquérito de 1814 funcionavam em Lisboa três fábricas de papel e uma de papel pintado. Em 1815, Vicente Maria Alizeri pede alvará e, inscrito nele, os seus privilégios para a fábrica que já tinha a funcionar na Rua do Telhal, 42 «com tanta ventura e progresso que vê necessidade de aumentar a sobredita fábrica» de cartão e papel. Ainda nesse mesmo ano João Vieira e C.ª pede provisão para a sua fábrica de papel e cartão sita na Rua do Loureiro, 126, «que fabrica bom artigo e está bem montada» como se lê no auto de visita. Um pouco mais tarde, em 1826, nasceria a do Beco dos Curtumes fundada por D. Leonor Domingues Pereira, que em 1859 passou à posse de Baltazar Peres e ainda laborava quando do Inquérito de 1881. Em 1829 é António da Silva que pede licença para a sua oficina papeleira montada no Beco d’Alfama, n.º 4 que fabricava «papel branco de aparas de papel e outro ordinário de embrulho». Depois, em 1836, por iniciativa de Isidoro António de Faria, nasceria a da Rua 24 de Julho, que em 1881 pertencia a José António de Carvalho.

Fora de Lisboa, na outra margem do Tejo, em 1822 é Bernardo Palyart quem pretende estabelecer na sua quinta uma fábrica de papel e em Coina, no ano de 1824, é Francisco Mendes quem pede provisão para laborar, constando do auto de vistoria que possuindo terrenos seus, lá havia montado 3 engenhos, que o local era muito vantajoso por ser pequeno e pobre e por existir perto um porto de embarque.

Próximo de Oeiras, em Barcarena, na Azenha do Bico, em 27 de Abril de 1815, José Manuel Rodrigues Guimarães diz que já está a trabalhar e pede provisão. Não muito distante, em Belas, pelo Inquérito de 1845 sabe-se da existência de uma fábrica que empregava 14 pessoas, era pertença de uma Viúva Guimarães e havia sido fundada em 1815. Pela data de fundação, local e apelido da proprietária, somos levados a crer que uma e outra são a mesma. Distinta será a de Herdeiros de João Ferro Claro, que se situava também em Belas, fora fundada em 1820 e empregava, tão só, seis operários, isto de acordo com o mesmo Inquérito de 1845.


[1] – AHMA – Arca de Ferro, F. 35 – “Decreto de 15 de Julho de 1802”, Regia Officina Typografica.

[2]– AHMA – Arca de Ferro, F. 37 – “Sentença de adjudicação à Fazenda Real de 15 prédios”. – Entre eles vários moinhos: Moinho d’El-Rei, Moinho das Pelles, Moinho do Catarrasco e o Moinho do Papel, o tal moinho medievo que havia sido de Manuel Teixeira.

[3] – Numa tradução minha ( muito livre): A vida é sempre boa, quando é vivida à custa dos outros.

[4] – Jacome Ratton – “Recordações de Jacome Ratton sobre as ocorrências do seu tempo”, pág. 138.

[5] – AHMA – “Arca de Ferro”, F. 41.

[6] – BNL – “Reservados, Códice 610”, fls 45-58.

[7] – Adriano Balbi – Essai satistique sur le royaumme de Portugal e d’Algarve”, Tomo I, pág. 453.

[8] – AHM – Ofício – DIV/3/13/08/29.

[9] – AHM – Ofício – DIV/3/13/08/29.


TRABALHO COMPLETO

I – Uma indústria que, tardiamente, chega a Portugal

II – O moinho de papel de Manuel Teixeira, na Alenquer quinhentista

III- Esclarecendo o que aconteceu na Ribeira do Papel, em Queluz

IV- Os primeiros tempos da Abelheira

V – Voltando a Alenquer, a fábrica do “Trapeiro” na Requeixada

VI – Da Real Fábrica de Papel de Alenquer a Lisboa e ao seu termo – VOCÊ ESTÁ AQUI

VII- Ainda a Real Fábrica de Alenquer, a mais moderna ao seu tempo

VIII – Regressando à Abelheira e a Lisboa Moinho da Lapa

IX – A segunda vida da Real Fábrica de Alenquer

X – Alenquer – O último capítulo da vila papeleira

XI – Cronologia de Moinhos, manufacturas e fábricas de papel em Lisboa e na Baixa Estremadura (séc. XVIII/XIX)

@José Leitão Lourenço (2019)
Mestre em História Regional e História Local
lourenco31051947@gmail.com

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