As faces da Serra de Montejunto

As faces da Serra de Montejunto

24/07/2019 0 Por hernani

AS FACES DA SERRA DE MONTEJUNTO

Serra de Montejunto (fonte: Alambi)

Em Janeiro de 1921 o conhecido pintor Ribeiro Christino, notável entre nós pelas aguarelas que deixou sobre o concelho de Alenquer, escreveu um artigo para a Revista de Turismo, no qual descreve uma subida à Serra de Montejunto, a partir de Vila Verde dos Francos. Montejunto era, por essa altura, uma serra de pastores, inóspita, onde nem estradas existiam. O acesso ao alto, fazia-se por trilhos, a pé, ou no dorso de animais, e quanto a árvores, escreve o pintor, «ao contrário das suas irmãs, as serras de Cintra e Arrábida revestidas de frondosos arvoredos e cantantes águas pelas encostas, na calcária Montejunto podem-se contar as árvores que possui». As florestas da serra estavam restringidas a dois escassos bosques, um no «extinto Convento de Vila Verde dos Francos, um oásis interessante naquela altura, com o seu aspeto de pequeno Bussaco, com as suas matinhas», e, a Quinta da Serra, onde, outras fontes documentais revelam a preservação de algum arvoredo.
A serra era, nesses anos da primeira metade do século XX, um lugar de intensa atividade pastoril. Na sua descrição, acrescenta Ribeiro Christino, referindo-se ao planalto da Fábrica do Gelo, «outra curiosidade daquela parte da serra é ver, nesse vale, em volta dum pequeno lago quase circular, pelo meio da tarde, os gados – na maioria cabradas – reunirem-se em torno dele, á bebida, trazidos ali pelos pastores dos numerosos lugarejos que ficam em torno do Montejunto, e que se aglomeram por centenares de cabeças, num enorme e curioso agrupamento pitoresco em volta da água.»
A serra de Montejunto, todavia, nem sempre terá sido um lugar despojado de arvoredo, conforme é descrito por este pintor. Frei Luís de Sousa, no século XVII, a propósito da presença dos dominicanos nesta serra, escreve, na História de S. Domingos algumas linhas sobre Montejunto, dizendo que «consta de uma só pedra em meio de terras lavradias, e por toda a parte cultivadas», cujas «grossas penedias vestidas a partes de matos espessos, e crescidos, são guarida de lobos e outros animais silvestres», o que permite concluir que, três séculos atrás, ainda aqui existiam importantes zonas de floresta Mediterrânea, habitat indispensável a espécies como o javali e os ungulados, que possibilitavam a subsistência de predadores de topo, como os lobos, referidos no texto.
Uma inesperada referência que nos remete para o que seria Montejunto no século XVIII, encontramo-la na revista A Hora, que em Janeiro de 1934 dedicou amplo espaço a Alenquer, a propósito de uma visita ao concelho pelo Ministro do Interior. Ouvidos alguns autarcas, diz o Presidente da Comissão Administrativa da Junta de Freguesia de Cabanas de Torres que, «existem nesta localidade várias antiguidades, como uma casa onde viveu algum tempo o infante D. Francisco, irmão de D. João V, onde vinha fazer grandes caçadas aos animais ferozes que então abundavam nesta dita Serra». A fazer fé nas memórias assim relatadas, constata-se que na primeira metade daquele século, a fauna que tem a floresta Mediterrânea como habitat, ainda encontrava abrigo nesta serra, pelo que deveriam continuar a persistir consideráveis bosques.
E o que aconteceu depois, e transformou Montejunto numa serra em que, no dizer de Ribeiro Christino, «podem-se contar as árvores que possui», pode ser facilmente compreendido se estabelecermos uma analogia com narrativa feita pelo pároco de Ota nas Memórias Paroquiais de 1758, sobre a serra da sua paróquia: «Esta mata em algum tempo se compunha de grossos matos silvestres, e bastantes loureiros, e figueiras (…), e hoje se acha só com os penedos, e penhascos de grande altura; nos quais se criavam varias aves a saber: corvos, bufos, grinchos, que são umas aves
tão grandes, e fortes que levam nos pés para os filhos quando os criam: perus, cabritos, coelhos, lebres, e raposas. E nas raízes destes penhascos se criavam em covas muito lobo, raposas, texugos, que faziam muita perda a estes lugares circunvizinhos assim nos gados como nos frutos; e esta foi a razão de se lhe queimarem os matos. (…) Hoje está de todo nua de matos, donde se não pode criar coelho nem perdiz.»
O que aconteceu em Montejunto não deverá ter sido substancialmente diferente do que aconteceu em Ota, e não foi sequer exclusivo destas duas serras; aconteceu o mesmo por todo o país, à medida que a fauna selvagem, sobretudo os predadores, era declarada incompatível com as atividades humanos; à medida que a população crescia e era necessário aumentar a pastorícia e a agricultura, extrair mais lenha para combustível, e produzir mais madeira para a construção. As árvores eram derrubadas, os matos eram queimados para criar pastagens e desalojar animais daninhos, nefastos à pastorícia, os bosques nativos desapareciam. Aconteceu o mesmo noutros lugares da Europa; quando se chegou ao século XVIII, muitas das florestas europeias tinham sido abatidas, e, chegou mesmo a haver falta de madeira.


A Inclusão dos Baldios da Serra de Montejunto em Regime Florestal

Sentiu-se então a necessidade de proteger os bosques que restavam e de replantar, pelo menos em parte, o que tinha sido cortado. Os Estados promovem então a reflorestação. Em Portugal estes trabalhos começaram pelas dunas do litoral, no início do século XIX, mas, com as dificuldades levantadas pelas invasões francesas, o exílio da corte, e posteriormente a independência do Brasil, os trabalhos foram interrompidos e só viriam a ser retomados quase um século mais tarde. Ainda no final do século XIX é retomada a florestação das dunas do litoral, que posteriormente se vai estender a algumas serras baldias do norte. A Serra de Montejunto, também ela constituída maioritariamente por terrenos baldios, entrou em Regime Florestal por decreto de fevereiro de 1910 – ainda no tempo de monarquia constitucional – tendo sido uma das primeiras serras portuguesas a ser apropriada pelos Serviços Florestais.
A florestação dos baldios provocou revoltas em muitas regiões do país, e o mesmo aconteceu em Montejunto. Para arborizar as serras, os Serviços Florestais pretendiam afastar o gado, o que desagradava aos pastores. Em Montejunto estes Serviços também pretendiam implementar esta medida, conforme documento de 1909 que sustenta a inclusão da serra em Regime Florestal Parcial. Gerou-se a revolta nas aldeias serranas, sobretudo na vertente do Cadaval; os tumultos prolongaram-se; houve abaixo-assinados e apelos ao governo, e, por fim, foi estabelecida uma plataforma negocial entre representantes das populações serranas e os Serviços Florestais, para definir áreas a arborizar e áreas que continuavam em pastoreio. Em 1914 foi publicado um novo diploma que redefine as condições em que Montejunto integra o Regime Florestal. Toda a área da serra afeta à freguesia de Lamas, com 819ha, ficou fora do Regime Florestal; uma zona entre a área pretendida pelos pastores e a área proposta pelos Serviços florestais, com 334ha, ficou «para florestar mais tarde», e os pastores mantiveram o acesso á lagoa da Quinta da Serra, para dar de beber ao gado, apesar desta ficar situada em terrenos que iam ser florestados.
É de presumir que a florestação tenha sido iniciada logo em 1910. Pelo menos há referências a uma tentativa de assalto, pelas populações serranas, à casa onde estavam depositadas as sementes de pinheiro, que ainda em 1910, estavam destinadas às primeiras sementeiras. A florestação foi um processo lento. Até 1949, terão sido arborizados 461,84ha segundo um inventário realizado pelo mestre florestal de Montejunto, e em 1957, data em que foi elaborado o Projeto de Arborização do Perímetro Florestal da Serra, o inventário dos povoamentos refere a existência 574,65 ha. Esta terá sido a área arborizada em quase 50 anos.
As espécies utilizadas foram sobretudo resinosas, com predominância do pinheiro manso (Pinus Pinea), embora tenham sido utilizadas também folhosas mediterrânicas, como quercíneas e castanheiros em pequenas áreas, ciprestes, e até, de modo residual, eucaliptos e acácias. Um
inventário de 1949 assinado pelo mestre florestal Julião Marques, identifica a arborização, nas Fontainhas, de 0,6ha com acácias, o que esclarece a origem da presença daquela espécie invasiva nesta zona – que, entretanto, se expandiu para 7,7ha, segundo o inventário realizado em 2011 para a Proposta de Plano de Ordenamento e Gestão da Paisagem Protegida. O pinhal que vemos atualmente em Montejunto, é assim o resultado da Intervenção dos Serviços Florestais, e nada tem a ver com a floresta primitiva da serra, embora seja constituído, na sua generalidade, por espécies nativas.
A opção de reflorestar os perímetros florestais com resinosas, resultou do cruzamento de vários fatores, entre os quais, a boa experiência colhida na florestação das dunas do litoral; por constituírem uma espécie pioneira, adequada a solos pobres e pedregosos, como os das nossas serras, devastados por séculos de erosão, depois do abate das florestas primitivas; e dos princípios em vigor na altura da formação dos primeiros engenheiros florestais portugueses. Estes formaram-se na Alemanha, em meados do século XIX, quando se apostava nas florestas puras de resinosas como forma de produção sustentada de madeira. É este o modelo que vão adotar em Portugal, e que vai persistir mesmo depois de na Alemanha, já se ter concluído que as florestas compactas de pinheiro provocam a acidificação dos solos, são suscetíveis ao aparecimento de pragas, e produzem madeira de baixo valor.
Apesar de os pinheiros serem pouco exigentes em solo, a florestação de Montejunto foi um trabalho difícil. As primeiras sementeiras, relata o mestre florestal responsável pelos trabalhos, «foram realizadas a covachos abertos no meio dos carrascos, os quais, em pouco tempo, dominaram os pinheiros assim semeados». «O estio dos últimos anos, tem secado enormes pedaços de arvoredo, abrindo-lhe assim grandes clareiras no povoamento», acrescenta; e, «os fogos, de há 15 anos para cá, queimaram umas centenas de hectares» escreve ainda o mestre florestal de Montejunto, em relatório datado de 1949.
Sobre os fogos aqui referidos, considerando a situação de conflito que foi criada com a inclusão da serra em Regime Florestal, não podemos excluir que, tal como aconteceu noutras regiões do país, alguns tenham sido ateados por ação humana.


O Projeto de Florestação de 1957

Em 1957 foi elaborado um Projeto de Florestação para aplicar a 1526ha. Através deste documento ficamos a saber que os mamíferos agora dominantes na serra, eram os coelhos e os ratos, que, libertos de predadores, proliferaram ao ponto de ter devorado 24 mil bolotas de azinho ali semeadas nesse ano, «sem restarem vestígio da sementeira». «Com o rótulo de proteção à caça, procede-se de há longa data, a campanhas de extermínio por qualquer processo, de todos os animais ditos seus inimigos», «aves rapaces e mamíferos diversos, considerados inimigos das espécies cinegéticas», relata este documento. O Projeto propõe a proibição de qualquer batida à raposa, na serra, por ser inimiga dos coelhos e dos ratos, nefastos para a disseminação florestal, o que, constitui, sem dúvida, uma proposta importante para o equilíbrio entre as espécies e a conservação da fauna.
Outrora habitat de «animais ferozes», constatamos através deste relato que Montejunto era, em meados do século XX, uma serra com a fauna muito empobrecida, onde os predadores eram perseguidos.
O Projeto de Florestação de 1957 apresenta a novidade de propor que uma área de 570ha de povoamentos de pinheiro seja percorrida por sementeiras e plantações de folhosas e outras espécies Indígenas, o que constitui uma evolução no pensamento florestal e uma novidade em relação aos trabalhos antes realizados na serra. Não é de crer no entanto que esta proposta alguma vez tenha sido implementada, tal é a escassez de folhosas de porte arbóreo em Montejunto.
Dos mais de 2 mil hectares arborizados pelos Serviços Florestais, na sua generalidade com resinosas, restavam, em 2011, 287ha de pinheiros, tendo o restante sido consumido por fogos diversos, sem voltar a regenerar. As folhosas de porte arbóreo, no seu conjunto, ocupam uma área de apenas 55ha, correspondentes a um por cento da Paisagem Protegida, embora se verifique a tendência para a sua expansão; os pastores estão em vias de extinção, e, o gado doméstico que ainda por ali busca alimento, constitui um substituto dos ungulados e outra fauna selvagem de maior porte, indispensável ao equilíbrio do ecossistema. A fauna selvagem tem recuperado nos últimos anos; o bufo real, um predador de topo, tem em Montejunto um habitat; a águia de bonelli, outro predador de topo, é uma visita destas paragens; o javali, desaparecido durante um século, tem em Montejunto um santuário; o esquilo vermelho, desaparecido de Portugal durante séculos, é o habitante mais recente da serra.
Porém, uma ameaça paira sobre Montejunto. A ocupar uma área de cerca de 900ha, os eucaliptos continuam a expandir-se, ocupam parcelas de terrenos de cultivo que constituíam importantes clareiras e desempenhavam o papel de corta-fogos; e, por vezes, é arrancada vegetação arbustiva nativa para, no seu lugar, efetuar plantações daquela espécie invasiva. Por mais estranho que possa parecer, na Paisagem Protegida da Serra de Montejunto, a espécie florestal dominante, são, os eucaliptos, o que empobrece a serra como espaço dedicado à conservação da natureza e desvirtua os objetivos da Paisagem Protegida.

Alenquer, 22 de julho de 2019

 

@Francisco Henriques (2019)

Presidente da Alambi

 

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