Algumas razões para o surgimento da cultura visual

Algumas razões para o surgimento da cultura visual

07/12/2011 0 Por hernani

Algumas razões para o surgimento da cultura visual

“Quando o dia nasce, o ar está repleto
de inúmeras imagens às quais o olho serve de íman”
Leonardo da Vinci

Há muito que a discussão sobre as imagens exige uma atenção redobrada. Relembremos que durante os anos vinte e trinta do último século o modernismo impedia o envolvimento do fotógrafo com o objeto fotografado. Ele era observador imparcial a gravar, com olhar indiferente, o que estava ao seu redor, e a fotografia era o árbitro eleito entre a nossa perceção visual e a memória do que foi visto. A objetividade da era moderna relacionava ritualmente o que estava em volta e denominava de realidade, e a fotografia era a prova concreta de que ninguém tivera alucinações durante aquele ato. Para Bragança de Miranda, “a visão tornou-se crescentemente mediada por tecnologias óticas, que envolvem os sujeitos e a espacialidade do real”. Com mais ou menos desenvolvimento vários autores comungam desta ideia central.

Até porque a contemporaneidade amplia a querela e torna as questões mais complexas: a media visual está a desafiar a hegemonia das antigas formas de media linguística, visto que no momento é a imagem que predomina. É o “Livro” e o Logos” que entram em crise. Tomando como exemplo a vida nos países industrializados isso acontece nos monitores das câmaras de vigilância instaladas em locais de passagem, em avenidas, em centros comerciais, nos bancos, nas portaria de prédios, etc., etc.. Se acrescentarmos a televisão, o cinema, o vídeo e as imagens gráficas e digitais, quer dizer que o lazer e o trabalho estão cada vez mais arrastados pela media visual facultando ao homem uma experiência visualizada, e de visualização, nunca antes verificada.

Mas, a proliferação da imagem digital levanta outro problema: ela aproxima-se daquilo que Hollis Frampton (1983) denominou de processos dubitativos da pintura pois, como na pintura, a imagem digital é manipulada até parecer correta. Não que a manipulação de imagens seja novidade, mas porque agora ela está em boca de cena. A dificuldade é que as pessoas continuam a manter a essência da veracidade da imagem técnica em alto conceito, principalmente a que é difundida pela media. Continua-se a compreender a imagem digital da mesma maneira que Roland Barthes (2006) compreendia a fotografia analógica, onde a objetividade produzida pela fotografia não era uma certeza, no sentido de restaurar o que fora abolido pelo tempo ou pela distância, nem no sentido de perfeita semelhança, mas sim a comprovação da existência do que era visto. Para Barthes, a fotografia analógica não podia mentir sobre a existência de seu referente.

Segundo Heidegger (1977)., “uma imagem mundial (…) não é uma imagem do mundo, mas sim o mundo concebido e compreendido como uma imagem (…) A imagem mundial não passa de um estado medieval para um moderno. É antes, o facto que o mundo se torna uma imagem quando tudo distingue a essência da era moderna” Por sua vez, para Mirzoeff (2003) “a visualização é a característica do mundo contemporâneo, mas isso não significa que se conheça necessariamente aquilo que se observa”.

A novel cultura visual discute o motivo pelo qual a cultura moderna e a cultura pós-moderna atribuem tanta importância à apresentação da experiência sob forma visual; e uma das suas mais importantes particulares caracteriza-se por visualizar as coisas que em si não são visíveis. A primeira imagem é a de Jesus Cristo; é assim que está aceite pela civilização ocidentalizada: “Ele é a imagem do Deus invisível, o primogénito de toda criatura, porque nele foram criadas todas as coisas, nos céus e na terra, as visíveis e invisíveis” (Cl 1, 15s).

Mas, na história da cultura visual há momentos onde o visual é contestado, discutido e modificado como um constantemente exaltado espaço de interações e de definições sociais (raça, religião, género, classe, etc.). “A imagem é o primeiro momento em que a vida se divide…”, afirma Miranda (1999) em “A Imagem de Amália”. Mais adiante cita Steven Shaviro: “o mundo recaiu na sua própria imagem tremeluzente, e já nada é verdadeiro ou falso…”.

“Já nada é verdadeiro ou falso!”. Conforme se entende, para Deodato Guerreiro (2000) em “Para uma nova Comunicação dos Sentidos”, esta questão passou para outro patamar: deixou de ser um caso histórico e passou a ser uma questão estética. “Se remontarmos o nosso pensamento à Grécia Antiga, todos temos conhecimento de que, segundo a tradição grega, o autor da “Ilíada” e da “Odisseia”, o poeta Homero, seria cego, uma questão que, para alguns, se apresenta imbuída mais de um juízo estético do que histórico. A propósito, refere Almada Negreiros (sustentado por Nietzsche) que a questão homérica será um juízo estético e não uma questão histórica. Contudo, continua de pé a imagem tradicional de Homero como “velho e cego, errante de cidade em cidade, cantando os seus versos”. Segundo Almada Negreiros, Homero não teria existido em pessoa (…) sendo tanto a “Ilíada” como a “Odisseia” a recolha dos cantos mais populares dos antigos poetas cantores da Grécia primitiva.”

“Estética”, outro problema para a imagem. Voltando a Miranda, “a visualidade e as “imagens” inscrevem-se numa economia geral (Bruce Mau) onde a estética desempenha um papel importante, nomeadamente através de estratégias de controlo, mobilização e rentabilização da visão”. Mas, para Miranda “não se deve confundir imagem e visão. Seria errado dizer que a prioridade ao visual e aos regimes óticos vem dos primórdios da cultura. Estando presente é ela que tem de se pôr à distância”.

Ainda para Miranda, “com efeito, a imagem mais do que um efeito “natural” foi justamente a primeira forma de emergência do humano. E ela é um revelador da sua íntima essência, a divisão. Claro que essa divisão não seria possível se tudo não fosse divisível. (…)”. Esta divisão tem a ver com a crise do sistema antigo. Tempos de imagens fortes, como a de Deus, que impedia a sua multiplicação. E é precisamente a divisão da imagem que está no motivo da cultura visual, que não pode ser dissociada da crise das imagens, substanciada no desaparecimento da imagem absoluta que caracterizava a Idade Média, nomeadamente da descentralidade da imagem de Cristo. “A imagem fáctica que movimenta a nossa atenção e força-nos a olhar, já não é uma imagem forte, é um cliché a tentar, segunda a forma de “cineframe”, de se inscrever num intervalo de tempo, no qual a ótica e a “kinematic” são indistinguíveis” (Virilio).

Com o aparecimento do digital alterou-se a maneira como percecionámos e analisámos as imagens. Passou de testemunho da Divindade a qualquer coisa que está no lugar de outra coisa qualquer e que não é pensada. No pós-modernismo o que está em causa é a procura do estatuto da imagem, e compreender a forma como as imagens complexas se juntam. Para Nicholas Mirzoeff, “o pós-modernismo é uma cultura visual”.

Nas palavras de Miranda “a lógica da divisão é bem antiga. Questiona ele: Não afirmou Tucídides que “uma pessoa culta devia ser: alguém que sabe escolher os seus companheiros entre os homens, que sabe escolher as coisas, os pensamentos, no presente como no passado”? Mas não é isso o mais difícil? E conclui este seu entendimento: “Estamos numa época em que todos escolhem, de entre o que lhes é oferecido, e em que o gosto de cada um é incitado… (Miranda, 1997, “Traços. Ensaios de Crítica da Cultura, Lisboa, Vega, col. Passagens).

E a Modernidade expunha algumas divisões na disposição do seu espaço, isto é, já era notada alguma separação entre “espaço público” e “espaço privado”, entre “trabalho” e “lazer”, entre “prosaico” e “estético”, como se não fosse suficiente a separação entre “espaço secular” e “espaço sagrado” já existente há muito. E naturalmente estas “separações” refletiram-se na imagem, que para Benjamin, McLhuan e Debord, juntamente com a mediação, era a inovação do novo tempo, da Modernidade. Época que Benjamin pretendia mostrar como produtora de “imagens oníricas” e onde se estabelecia um mercado de imagens que interagia com o imaginário coletivo; época depositária dos sonhos comunitários, pois os homens passaram a sonhar com uma sociedade mais justa e igualitária. Época onde a divisão da sociedade em classes e a divisão do trabalho transformou as pessoas em “especialistas”. “Interrogar a origem das imagens equivale a interrogarmo-nos sobre a nossa própria origem, sobre o que nos funda imaginariamente e simbolicamente, a uma distância indefinidamente regulada e, contudo, sempre desregulável, relativamente àquilo a que chamamos o real e do qual nunca saberemos nada” (Mondzain, 2003).

São “divisões” suficientes para tornarem a imagem sujeita a estudos aprofundados. E o surgimento da Cultura Visual não pode dissociar-se da reactivação do princípio originário da imagem como divisão, sobretudo a partir da sua reprodutibilidade técnica.

Hoje, a cultura visual é mais do que a simples análise de uma imagem; ela evoluiu para um peculiar trabalho interdisciplinar. No entanto, segundo Castellary (1997), “continua a existir, em não poucas mentes académicas, um desprezo não confessado pelas ciências da imagem. Existe (…) um receio intelectualista do campo do audiovisual, acusando-se os seus especialistas de carecer de suficiente base epistemológica e passado científico”.

Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2011)

Programador Cultural

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