A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura (v): Voltando a Alenquer, a fábrica do “Trapeiro” na Requeixada

A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura (v): Voltando a Alenquer, a fábrica do “Trapeiro” na Requeixada

30/03/2019 0 Por hernani

A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura

Das suas origens ao séc. xx (v)

Voltando a Alenquer, a fábrica do “Trapeiro” na Requeixada

Tinas no fabrico de papel
Entretanto, recuando a uma data indeterminada da última década do século XVIII, necessário se torna voltar a Alenquer, localidade onde um lisboeta, grande negociante de trapo, assentara fábrica. Sobre o estabelecimento nessa vila de José António da Silveira, dito o “Silveira Trapeiro”, é ainda Jacome Ratton quem nos dá a conhecer as circunstâncias em que tal ocorreu. Escreveu ele:

«(…) posso lisonjear-me de ter sido o primeiro que indiquei aquele local [Quinta do Contador], para fábrica de papel a um certo José António da Silveira, contratador de trapos, morador na Rua Áurea, ao qual na Junta do Comércio, embaracei provisão para exportar matéria prima, persuadindo-o, que era melhor, que ele estabelecesse uma fábrica de papel.»[1].

E que local era esse que Ratton omitiu mas que acabámos por encontrar no “Livro dos Manifestos das manufacturas”? Socorrendo-nos, mais uma vez, do que o prior de Santiago, Paulo da Veyga, escreveu nas suas “Respostas” de 1758, melhor ficaremos a conhecer esse troço do rio Alenquer, entre a vila com o mesmo nome e o seu encontro com o Tejo em Vila Nova da Rainha. Escreveu o clérigo utilizando uma linguagem que hoje nos soa algo prazerosa:

«4.ª – Não é navegável senão um quarto de légua junto ao lugar de Vila Nova e são barcos, bateiras e fragatas as embarcações que o frequentam. E se não tivesse o impedimento dos açudes dos moinhos poderia chegar a mesma navegação a Alenquer.

5.ª – É quieto na carreira, e só quando encontra açudes é que faz estrondo.

14.ª – Desde o seu nascimento até onde encontra a maré tem onze açudes que lhe embaraçam ser navegável.

16.ª – Do nascimento para baixo tem catorze moinhos, e nestes quarenta e quatro mós de moer grão todo o ano, e em muitos deles lagares de azeite (…)»[2].

Pois foi num destes moinhos, no da Quinta do Contador, anexa à da Requeixada, o primeiro a juzante da vila e um pouco adiante do sítio da Romeira e do Oratório franciscano de Santa Catarina, que o dito Silveira de sociedade com um Duarte Gardner (também mencionado como Guiardener, não único aportuguesamento do seu nome inglês), se haveria de estabelecer, acedendo à sugestão de Ratton, tendo para tal arrendado o terreno pedido a concessão de alvará à Junta do Comércio, licença que foi obtida em 17 de Setembro de 1798[3].

Matéria prima não seria problema, uma vez que era essa a sua actividade, o negócio do trapo, material que havia rareado em meados do século, facto que motivou Bartolomeu Marinelli – então na Lousã e a braços com a mesma dificuldade – a apresentar uma representação pedindo o fim da exportação do mesmo, reclamação essa a que Pombal deu despacho favorável, assinando e mandando publicar o Alvará de 19 de Abril de 1749[4], acto esse que terá resolvido o problema da Lousã e funcionado, também, como incentivo ao aparecimento de novas oficinas papeleiras.

Então, era o negócio do trapo muito rentável atendendo ao «consumo desta fazenda prodigioso em toda a Europa» como nos informa Jacqueri de Sales, o qual ainda nos adianta no seu “Dicionário Comercial”, que teve versão portuguesa, que esta sustenta «(…) as fábricas de papel, que estão estabelecidas nos referidos estados onde neste caso, a extracção dos mesmos trapos é geralmente proibida: Em França a exportação deles esteve rigorosamente proibida até Março de 1773(…) », e, referindo-se a Portugal, que «(…) é também proibida neste Reino, concedendo-se às vezes a licença para os exportarem»[5].

Mas para quê exportar, se para ele Silveira seria mais lucrativo transformá-lo em papel? Sensível a este argumento ter-se-ia ligado ao tal inglês de nome Duarte Gardner, numa associação capital/mestre manufactureiro, geralmente estrangeiro, muito comum nesses tempos.

Já referimos que é incerta a data de assentamento desta fábrica, mas sabemos que em 1797 as Apólices do Real Erário, o nosso primeiro papel-moeda, foram emitidas utilizando-se papel proveniente da manufactura de Alenquer[6], logo, em data anterior já ela existiria, embora, como já dissemos, só em 1798 tivesse obtido alvará. Por outro lado, sabemos que não consta de uma “Relação dos generos que se manufacturavam nas fabricas estabelecidas em Lisboa e mais cidades, villas e povoações do reino”[7] de 1788, pelo que a data do seu aparecimento mediará entre uma e outra das atrás citadas.

Consultada a produção desta fábrica a partir dos livros do Novo Imposto, verificamos que em 1801, quando era seu administrador Ezequiel António de Carvalho, a produção era escassa resumindo-se a papel pardo, de embrulho e costaneiras, mas que no final do ano, quando de nova visita da comissão algo se havia modificado, tendo aumentado a produção, estendendo-se agora esta ao fabrico de papel da Holanda ou Olanda e ainda de papel azulado[8].

Assim continuaram as coisas até 1804, ano em que ocorreu a derradeira visita e se procedeu ao último registo, o qual parcialmente transcrevemos:

«(…) nesta fábrica do Contador subúrbios da vila de Alenquer, que é anexa [no sentido de propriedade, não de localização] à Real Fábrica de papel erecta na dita vila (…) e sendo ali José António da Silva administrador da dita Real Fábrica de Papel declarou (…) ter sido manufacturado na dita fábrica do Contador desde que trabalha por conta da sua Administração e o que se acha nela manufacturado quando se anexou e vinha do tempo de Silveira e que se achava pronto para remeter à cidade de Lisboa, será o seguinte: 47 balotes com 10 resmas de papel branco cada um em que entram dez de costaneiras – 504$000; 74 balotes com dez resmas de papel pardo – 296$000»[9].

Daqui se conclui que a Gardener e Silveira havia sido anexada à Real Fábrica da mesma vila, pelo que quem agora recebia a comissão era o administrador daquela José António da Silva e não o Doutor António Mendez Franco[10]– genro e herdeiro do Silveira “Trapeiro” que entretanto havia falecido – o qual, por sua vez, transitaria para os quadros da nova fábrica como ‘comissário do trapo’ na cidade de Lisboa.


[1] – Jacome Ratton – “Recordações de Jacome Ratton sobre as ocorrências do seu tempo”, p. 38.

[2] – ANTT – “Memórias Paroquiais”, Vol. 2 , n.º 46, p.330/331.

[3] – AHMOP – PT/AHMOP/JC/40.

[4] – Arnaldo Faria de Ataíde e Melo – “O Papel como elemento de identificação” in Separata dos Anais das Bibliotecas e Arquivos, 1926, p. 86 – (Alvará aí reproduzido).

TRABALHO COMPLETO

I – Uma indústria que, tardiamente, chega a Portugal

II – O moinho de papel de Manuel Teixeira, na Alenquer quinhentista

III- Esclarecendo o que aconteceu na Ribeira do Papel, em Queluz

IV- Os primeiros tempos da Abelheira

V – Voltando a Alenquer, a fábrica do “Trapeiro” na Requeixada – VOCÊ ESTÁ AQUI

VI – Da Real Fábrica de Papel de Alenquer a Lisboa e ao seu termo

VII- Ainda a Real Fábrica de Alenquer, a mais moderna ao seu tempo

VIII – Regressando à Abelheira e a Lisboa Moinho da Lapa

IX – A segunda vida da Real Fábrica de Alenquer

X – Alenquer – O último capítulo da vila papeleira

XI – Cronologia de Moinhos, manufacturas e fábricas de papel em Lisboa e na Baixa Estremadura (séc. XVIII/XIX)

XII – Pesquisas e Bibliografia

[5] – Alberto Jacqueri de Sales –“ Diccionario do Commercio”, Edição manuscrita [depois de 1723], IV Vol., p.338.

[6] – cct.portodigital.pt – Museu do Papel Moeda – Fundação Dr. António Cupertino de Miranda – Apólice – BI da Peça (Cons. Em 25 de Novembro de 2012).

[7] – Ministério das Obras Públicas, Comércio e Indústria –“ Inquérito Industrial de 1881: Inquérito Directo/Ministério das Obras Públicas”, Lisboa, Imprensa Nacional, 1881-1883 – Preâmbulo, p. IX e seguintes.

[8] – ANTT – Impostos, 25, Alemquer, n.º 184,  L.º do Manifesto das manufacturas.

[9] – ANTT – Impostos, 25, Alenquer, n.º 186.

[10] – Jacome Ratton – “Recordações de Jacome Ratton sobre as ocorrências do seu Tempo”, pág. 128.

@José Leitão Lourenço (2019)
Mestre em História Regional e História Local
lourenco31051947@gmail.com

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