A participação de Anacleto Gonçalves na UTI de Alenquer

A participação de Anacleto Gonçalves na UTI de Alenquer

24/05/2014 0 Por hernani

A participação de Anacleto Gonçalves na UTI de Alenquer

A vida é breve, a alma é vasta” (Fernando Pessoa)

 

Anacleto Gonçalves

Extremamente difícil escrever estas palavras para iniciar o trabalho do Anacleto Gonçalves sobre a sua participação na Universidade da Terceira Idade de Alenquer, concretamente na cadeira “Sociedade e Comunicação”, que eu tive o privilégio de ministrar.

É objectivo das UTI preocuparem-se com a ocupação dos tempos livres dos idosos, promovendo e valorizando a sua integração e, sobretudo, evitar o seu isolamento e marginalização. Pelo facto da maioria dos idosos que frequentam as UTI pertencer à classe média da população, têm surgido algumas críticas: primeiro, que estas são selectivas e elitistas; segundo, que os idosos podem ser meros espectadores ou consumidores do conhecimento, em vez de serem também eles “produtores de saber”.

Quanto à primeira crítica, desconhecendo a realidade global da UTI de Alenquer, na verdade aos alunos inscritos nesta cadeira de “Sociedade e Comunicação” era-lhes proposto a aprendizagem para identificar, distinguir e contextualizar os grandes paradigmas da Comunicação. Igualmente pretendeu-se que esses alunos adquirissem as competências teóricas para aumentar a sua capacidade crítica, bem como uma sensibilidade acrescida ao impacto que os diversos modelos de comunicação provocam na sociedade.

Quanto à segunda crítica, nada mais falso, pois todos os alunos, e em particular o Anacleto Gonçalves, nunca foram espectadores mas sim actores activos na dinâmica da aula; poderei dizê-lo sem qualquer espécie de rebuço, que o Anacleto foi um profícuo “produtor de saber”: participativo pró-activo na aula e, nos TPC, excedia-se indo sempre para além daquilo que lhe era exigido, o que demonstra o seu empenho e entusiasmo pela matéria ministrada. Este trabalho de Anacleto Gonçalves confirme inequivocamente estas minhas palavras.

Com o Anacleto, a aula foi um espaço de experiência do mundo e de partilha; foi um fórum permanente e interactivo, inclusivo e produtivo para a vida inclusiva: foi um espaço de comunicação partilhado pelo discurso fundamentado na tradição e na experiência de vida, pois sem comunicação não há igualdade de oportunidades na sócio-comunicabilidade e interacção no “mundo da vida”.

Hoje, ainda há demasiada gente isolada, triste, sozinha em casa e a sofrer uma solidão horrorosa, até perigosa, sem poder ter a alegria de falar com alguém e partilhar saberes; é verdade. Igualmente é verdade que a vida lhes nega a possibilidade de serem capazes de olhar e perceber, de comunicarem e socializarem-se, de se relacionar e interagir com o seu semelhante; e, por vezes eles são autênticos livros singulares e desconhecidos, mas igualmente são “transparentes”: a sociedade olha para eles mas não os “vê”.

Sartre percebeu que a nossa existência é confirmada pelo olhar do outro. Isso é confirmado por certas tribos da África do Sul, onde o principal cumprimento é a expressão “Sawu Bona” (eu estou a ver-te), que estimula a resposta “Sikhona” (eu estou aqui). Quer isto dizer que começamos a existir quando o outro nos vê. Interessante a ética “ubuntu” de algumas tribos do Saara, que em zulu significa “uma pessoa torna-se pessoa por causa das outras pessoas”; e que quando uma pessoa passa por outra pessoa e não a cumprimenta, está a recusar vê-la, está a negar-lhe a existência.

É considerado por todos que, na actualidade, a velhice é um problema social, apesar de os idosos de hoje viverem situações de velhice e reforma de modo diferente de algumas décadas atrás. De facto, hoje coexistem dois modelos de velhice: uma velhice activa a par de uma outra velhice, esta passiva, a tradicional. No primeiro segmento, nota-se o aumento da participação na vida cultural e a necessidade de se sentirem inseridos social e culturalmente; procuram continuar activos e actualizados em diferentes áreas do conhecimento, aproveitando o facto de a educação começar a ser, cada vez mais, perspectivada como um processo contínuo ao longo da vida, e não limitada à educação escolar como preparação para o mundo do trabalho.

Os termos “cadeira”, “aula”, “TPC” (trabalhos para casa) e “alunos”, que utilizei atrás, inserem-se num conceito de educação formal que quis implementar neste curso, incorporando alguns rituais académicos, como a folha de presenças, a pontualidade, a avaliação, o delegado de turma, os grupos de trabalho, a leitura por um aluno do resumo da aula anterior, uma prova escrita, distribuição de textos, aulas com convidados, trabalhos de campo, entre muitos outros rituais; sempre com o auxílio de suportes multimédia. No fundo, proporcionar aos alunos uma ambiência universitária para recordar àqueles que passaram por essa experiência, e para dar um “cheirinho” aos outros que não tiveram essa possibilidade.

Sobre o trabalho de campo, “um dia, ser um flâneur nas ruas de Alenquer”, Anacleto Gonçalves escreveu: “Confesso que fiquei receoso quando saí para a rua com tal propósito; perdido mesmo. Que máscara deveria colocar para parecer incógnito perante uma comunidade onde todos se conhecem? E ao observá-la, vi-a como uma parcela contida numa sociedade que se vê depravada por ela mesma, e senti uma imensa revolta pela minha impotência para alterar aquele rumo…“. É um texto lindíssimo que o próprio Anacleto leu na Aula nr. 18 (O Homem e a sua complexidade: heróis da pós-modernidade), no dia 4 de Março de 2012, no Museu João Mário, numa aula aberta perante a presença de cerca de cem pessoas. Mas, Anacleto escreveu outros textos, sobretudo os resumos das aulas anteriores, que eram outras aulas, tal a minuciosidade e a pesquisa que esteve por detrás de cada um dos seus textos.

Reconheço que “Sociedade e Comunicação” não é uma cadeira fácil, pois é dirigida a alunos com alguma informação acumulada. Se ter informação acumulada é elitismo então os que criticam a UTI por ser elitista têm razão.

Será que o programa desta cadeira estaria acessível a todas as pessoas? Ela tem como público-alvo todas as pessoas de ambos os sexos, com idade igual ou superior a 50 anos, e que tenha capacidade psíquica adequada à realização das actividades propostas no programa. E este programa, na sua síntese, é muito simples.

    «A Humanidade, dita sociedade, tem o dom sublime de comunicar entre si, as suas ideias e pensamentos, por meio da linguagem falada e escrita.
    O que é a “sociedade”? Será só uma massa disforme de pessoas a consumir, ou transportará ela consigo alguns sinais de humanismo e solidariedade? Terá ela assentado para segundo plano a tendência natural de egoísmo e individualismo, ou passou ela a ser solidária e a reverenciar os conceitos de cidadania?
    A sociedade globalizada, estará mais próxima do “Cyborg” e do “Matrix”, ou afastada, de vez, da “sociedade arcaica”? A sociedade do ciberespaço, das redes e das comunidades virtuais, estará a consolidar a sociedade da “Inteligência Artificial”?
    A invenção do relógio terá sido um marco significativo da transição das sociedades tradicionais para as sociedades modernas? O homem-massa será a antítese da figura do homem culto, e estará inserido numa sociedade que o manipula a seu bel-prazer?
    “Sociedade” é o mesmo que “Comunidade”? O que é a “Informação”? E a “Comunicação”? Será que sempre que há informação, a comunicação estará presente? O “consumo” é uma forma de “comunicação”? A “Acessibilidade” à informação disponibilizada será idêntica para todas as pessoas?
    “Sociedade”, “Informação”, “Globalização”, “Comunicação” e “Acessibilidade” são vocábulos que em si encerram um mundo de dúvidas e de realidades.”
    “Sociedade e Comunicação” propõe-se apresentar e explicar alguns dos paradigmas da investigação sociológica no domínio da comunicação, da comunicação mediática e, em particular, da sua acessibilidade pelas massas.»

Foi inserido neste programa que Anacleto Gonçalves se incluiu de corpo e alma; com entusiasmo, e com amor, poderei dizê-lo. As aulas deste curso já faziam parte de si próprio. Seguiu escrupulosamente o método didáctico proposto. E os dez procedimentos programados não eram assim tão fáceis: apresentação no início de cada aula do sumário dos temas a debater; leitura resumida da aula anterior efectuada pelos alunos; visualização de produtos audiovisuais em aula e correspondente debate; leitura de textos auxiliares e correspondente debate; exposições complementares do monitor, nas quais tratará de introduzir novas chamadas em cada um dos temas discutidos; as visitas de estudo terão um procedimento idêntico ao das aulas; as aulas com convidados terão um procedimento idêntico ao das outras aulas; nos trabalhos a apresentar, o tempo dedicado pelos alunos à investigação será sempre fora do horário curricular; os alunos poderão incluir nos seus trabalhos as investigações resultantes das consultas à bibliografia recomendada pelo monitor, assim como de outras fontes, como por exemplo, da Biblioteca Municipal, de tombos particulares ou da Internet; apresentação dos temas a debater na aula seguinte e disponibilização de textos auxiliares correspondentes, quando for caso disso.

Bachelard defendia que “as coisas nos devolvem o que nelas procuramos”. Por esse motivo, insisti com premeditada redundância, em partilhar a minha crença em relação aos efeitos salutares da partilha; neste caso, da partilha do conhecimento. Assim, o conhecimento cresce, multiplica-se e generaliza-se. E torna-se acessível a todos. Alguém, que não me recordo agora, disse que “a vida deve ser vivida todos os dias de forma solidária e em permuta, com intensidade e perspectiva”.

No início da era moderna houve três grandes acontecimentos que condicionaram toda a sua práxis: primeiro, os Descobrimentos Portugueses e a subsequente exploração de toda a Terra; segundo, a Reforma, com a expropriação das propriedades eclesiásticas e monásticas, e o consequente duplo processo de expropriação individual e acúmulo de riqueza social; terceiro, a invenção do telescópio, que possibilitou o desenvolvimento de uma nova ciência que considera a natureza da Terra do ponto de vista do universo.

Aos olhos das gentes da altura, o mais espantoso dos três eventos foi a descoberta de continentes desconhecidos e de oceanos jamais sonhados; o mais perturbante foi a irreparável cisão do cristianismo ocidental através da Reforma, com o compulsivo desafio à própria ortodoxia e a imediata intimação à tranquilidade espiritual dos homens; e indubitavelmente o menos compreendido de todos foi o aparecimento de um novo instrumento, inútil a não ser para olhar as estrelas.

Nas aulas falou-se do Infante D. Henrique, de Vasco da Gama e Pedro Álvares Cabral. Igualmente se falou de Lutero e da Inquisição. Por fim, Copérnico, e Galileu Galilei e a sua excomunhão pela Igreja Católica, e a sua absolvição passados mais de duzentos anos, também vieram a cena.

Anacleto Gonçalves também participou activamente nas aulas sobre o desenvolvimento do Estado Moderno, nomeadamente de Max Weber, Maquiavel, e Thomas Hobbes e o “seu” Leviatã. Sobre a Modernidade, Anacleto teve uma participação muito activa na discussão sobre Baudelaire e o “seu” flâneur. Na pósmodernidade a discussão foi muito intensa sobre o fim das metanarrativas e quando se falou de Jean-François Lyotard, Baudrillard e Antero de Quental.

Um marco neste curso foi sem dúvida a aula aberta realizada no Museu João Mário, perante cerca de 100 pessoas alheias à turma de Anacleto, onde a “estrela” da tarde foi o “Herói da pósmodernidade”. Ele esteve “presente” na aula de diversos modos, como Nick Vujicic, uma vida épica na luta pela sobrevivência, o convidado presencial que deu uma aplaudida conferência, Deodato Guerreiro, cego desde criança, acontecimento que não o impediu de hoje ser o professor mais classificado da Universidade Lusófona e, sobretudo, os trabalhos dos alunos, onde o “herói da pósmodernidade” foi o “herói”, perdoem-me a redundância. Veja-se o excelente ensaio que Anacleto Gonçalves fez, “flâneur por um dia”.

O processo comunicacional proposto no nosso curso também contemplou a manipulação do virtual, a combinação entre diferentes mídias, a cibercultura e o hibridismo, os digital games, o cyborg e a intermutabilidade entre máquina e organismo e o Homo ciberneticus, Visionámos Avatar e Matrix.

Foi um curso onde se pretendeu possibilitar aos alunos identificar, distinguir e contextualizar os grandes paradigmas da Comunicação ao longo da vida. Foi uma experiencia enriquecedora para mim, onde a partilha dos diversos conhecimentos me deixou mais rico. Aí, Anacleto Gonçalves teve uma influência tremenda, pois o seu profundo saber “obrigava-o” a ir quase sempre para além daquilo que lhe era exigido.

Ao Anacleto Gonçalves, o meu profundo obrigado pela partilha destas horas. Foi um imenso prazer.

in Prefácio da publicação de Anacleto Gonçalves sobre a sua participação na UTI de Alenquer, no ano lectivo de 2012-2013.

 

Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2013)

Professor de “Sociedade e Comunicação” na UTI de Alenquer

hernani.figueiredo@sapo.pt

965 523 785

 

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