A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura (iv): Os primeiros tempos da Abelheira

A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura (iv): Os primeiros tempos da Abelheira

03/03/2019 0 Por hernani

A indústria do papel em Lisboa e na baixa Estremadura

Das suas origens ao séc. xx (iv)

Os primeiros tempos da Abelheira

No que respeita à Abelheira, mas não à grande fábrica que ali nasceria em 1841, o fabrico do papel nas margens do Trancão terá tido o seu início após o grande terramoto de 1755, por iniciativa dos padres “vicentes”, assim chamados por serem do mosteiro de S. Vicente de Fora.

Estes frades, da Ordem dos Cónegos Regrantes de Santo Agostinho, que pouco tempo após a tomada de Lisboa tiveram mosteiro em S. Vicente, fora das muralhas, por vontade de D. Afonso Henriques, foram os mesmos que para «sua grandeza» receberam também em doação, no ano de 1176, uns «salgados, ribeiras de sal e terras de tojo em Monflorim ou Monflorido», doação que viria a ser confirmada por D. Afonso II e, sucessivamente, por D. Sebastião, D. Filipe III e D. Pedro II.

Nesse local, nas margens do rio Trancão, onde ele na realidade já é trunculento, fazendo esquecer o manso correr das suas águas em Sacavém, estabeleceram-se os cónegos para depois, com pio engenho, alargarem esse domínio até se tornarem donos da Quinta do Arrais, agregando a esta, décadas mais tarde, a da Abelheira junto a S. Julião do Tojal com o Zambujal pelas costas.

Gustavo de Matos Sequeira, que estudou exaustivamente todo o evoluir deste domínio rural e as fábricas de papel que aí houve[1], pouco deixando por revelar a outros investigadores – excepto o relativo ao período que medeia entre as invasões francesas e o retomar da fábrica pelo barão do Tojal, omissão sobre a qual, a seu tempo, faremos luz – é da opinião que os frades, na sequência do grande terramoto de 1755 e face à ruína em que ficara a sua casa mãe em S. Vicente de Fora, mudaram-se para essa propriedade da Abelheira, onde em tempos anteriores, no Moinho da Lapa, na vizinha Quinta do Arrais, já se teriam dedicado à arte de fabricar papel. Sobre esse período, pergunta e responde Matos Sequeira:

«Qual seria o cónego curioso e ilustrado que teve a ideia? Sobre ser uma empresa patriótica, de nobre aspecto económico e cultural, era um negócio interessante, e era ainda um entretenimento. Os Vicentes eram cultos. Agradou-lhes decerto a ideia e vá de a pôr em prática. Quando teria sido isso?

Os documentos consultados por raciocinio e ao acaso por probabilidades e por palpite, conservaram-se mudos. Há uma data (1730) lançada um pouco ao acaso (…)»[2].

Certo é que, na sua fuga a uma Lisboa destruída e refúgio numa quinta e propriedade «vastas e acomodadas», onde o cataclismo pouco se fizera sentir, os frades viraram-se, também, para o fabrico do papel e «começou-se a construir um reservatório e a montar o engenho, as tinas e os caixões para o trapo, o torneador, as imprensas, as formas. E eis os religiosos fabricantes e a trazer pelas ruas da cidade, a apregoar, os vendilhões de papel, fardo às costas por conta do Mosteiro de S. Vicente», seguindo, assim, o exemplo do que se fazia na Lousã, na Feira, mais a norte em Vizela e, com algumas probabilidades, ainda em Alenquer.

Fabricava-se, então, na Abelheira, papel pardo e de embrulho dito lombardo, e, mais tarde papel de escrever da qualidade exigida para a impressão do papel selado. Terá havido alguma prosperidade até à chegada dos franceses, mas com estes a actividade decaíu e terá mesmo cessado. Porém, por pouco tempo, como veremos.

Em Junho de 1810, os cónegos arrendaram, por escritura pública, a Casimiro José da Costa a Azenha do Pátio do Arrais (nome antigo da quinta por ter pertencido a Vicente Arrais), até «ao S. João de 1814», mas este, à revelia dos cónegos, arrendou-a por sua vez a D. Bernarda Joaquina Ramos que, de imediato, aí estabeleceu uma manufactura de papel de sociedade com António Alves Quintão, para a qual em 23 Janeiro de 1812 obteve privilégio real, após provisão da Junta do Comércio.

Este facto veio a suscitar uma demorada demanda judicial com os cónegos pedindo o despejo dos rendeiros, embora reconhecendo que «o Mosteiro não se havia logo oposto quando começou a manufactura de algum papelão e papel pardo, por não ter motivos para desconfiar», mas que não sendo a fábrica independente da quinta (embora a mesma fosse murada), lá tinham que entrar para regular a água que vinha da levada e abrir e fechar esta para as regas necessárias na sua propriedade. Para mais, disseram eles, teria havido uma mudança de uso da azenha e o Mosteiro tinha que pagar a guardas a vigilância da quinta, já que os operários do papel lá entravam para roubar e estragar os frutos e as produções. Respondendo, ainda, ao argumentado por D. Bernarda Joaquina, a manufactura não era assim tão importante ao Estado já que só produzia papel pardo e «algum papel branco tão ordinário que mal serve para nele se escrever».

Esta longa controvérsia judicial viria a resolver-se tomando os cónegos de trespasse a azenha (que afinal era sua) e a oficina manufactureira aí instalada, tornando-se eles, em 1814, os efectivos donos dessa pequena indústria, continuando como Mestre da mesma Manuel Domingues que já o fora no tempo de D. Bernarda Joaquina. Em 16 de Maio de 1816 pedem os cónegos provisão régia para a mesma já que vinham trabalhando « (…) até ao presente debaixo daquela que fora dada a D. Bernarda», e em 1818 obtiveram licença para continuarem com a fábrica.

          Assim, resolvido esse contencioso e a situação dele herdada, funcionou a manufactura da Azenha do Arrais, na Abelheira, por largos anos. Em 1830 pedem os «vicentes» cópia da provisão passada em 16/5/1816 por o original se haver extraviado e, dito isto, eis-nos chegados a mais um momento crítico da vida da Abelheira com o desfecho da guerra civil desfavorável aos absolutistas.

Como nos diz Matos Sequeira, em 1833 é elaborado um inventário que avaliava em 195$800 réis o recheio da oficina papeleira e, voltando à documentação da Junta do Comércio, nesse mesmo ano um tal José Joaquim de Paula, natural de Góis, onde teve fábrica de papel até ser obrigado a fugir do local por motivos políticos, afirma possuir equipamento para o fabrico de papel vindo de França e fornecido por Anselmo José Braamcamp, pelo que solicitava que fosse autorizado a estabelecer-se na Abelheira, o que os cónegos recusaram alegando que iam destruir a fábrica, mas que lhe vendiam os utensílios da mesma, isto a 12 de Dezembro do ano de 1833. Por fim a 9 de Janeiro de 1834, estando já os cónegos no Convento de Mafra, são estes intimados pela Junta do Comércio a fazerem funcionar a fábrica, o que de todo já não viria a acontecer.[3]


[1] – Gustavo de Matos Sequeira – “A Abelheira e o fabrico de papel em Portugal”, (s/n.º. pag.).

[2] –  Ibidem.

[3]  – AHMOP – PT/AHMOP/JC/40 – Junta do Comércio, Processos referentes a indústrias; Papel.

TRABALHO COMPLETO

I – Uma indústria que, tardiamente, chega a Portugal

II – O moinho de papel de Manuel Teixeira, na Alenquer quinhentista

III- Esclarecendo o que aconteceu na Ribeira do Papel, em Queluz

IV- Os primeiros tempos da Abelheira – VOCÊ ESTÁ AQUI

V – Voltando a Alenquer, a fábrica do “Trapeiro” na Requeixada

VI – Da Real Fábrica de Papel de Alenquer a Lisboa e ao seu termo

VII- Ainda a Real Fábrica de Alenquer, a mais moderna ao seu tempo

VIII – Regressando à Abelheira e a Lisboa Moinho da Lapa

IX – A segunda vida da Real Fábrica de Alenquer

X – Alenquer – O último capítulo da vila papeleira

XI – Cronologia de Moinhos, manufacturas e fábricas de papel em Lisboa e na Baixa Estremadura (séc. XVIII/XIX)

XII – Pesquisas e Bibliografia

@José Leitão Lourenço (2019)
Mestre em História Regional e História Local
lourenco31051947@gmail.com

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