Do mudo para o sonoro

Do mudo para o sonoro

29/11/2011 0 Por hernani

Alterações do cinema mudo para o cinema sonoro no “Livro das Ilusões”, de Paul Auster

Do mudo para o sonoro

 “Trata-se de uma história acerca de um homem que escreve uma história acerca de um homem que escreve uma história – a história dentro da história.”

Paulo Auster


Paul Auster

A sincronização do som com a imagem revolucionou por completo os bastidores do cinema, sobretudo no chamado cinema de produção independente, e essencialmente no desempenho dos actores, que antes tinham uma grande liberdade de acção em termos de movimentação física e não tinham que decorar diálogos porque estes eram escritos nos filmes, e agora tinham de falar para microfones escondidos e de decorar esses diálogos. Com o advento do sonoro, muitas dessas estrelas do cinema mudo sentiram-se incapazes de se adaptar e viram as suas carreiras terminadas. Outros, mais inovadores e populares, trocaram as duas bobines pela longa-metragem, e com isso a qualidade do filme cómico curto sofreu um drástico declínio (Auster, 2002:16). Entretanto, os actores mais conhecidos começaram a ser disputados pelos produtores mais poderosos (Auster, 2002: 115). As produções independentes contavam só com um ou dois actores residentes, o restante era sempre pessoal novo e para os papéis secundários. A sua identidade não interessava ser muito conhecida; artistas novos por serem mais baratos; e se algum tinha uma pronúncia estrangeira, sobretudo espanhola, já não era contratado, pois o público americano rejeitá-lo-ia (Auster, 2002:38). A introdução de formatos mais largos e o desenvolvimento dos efeitos especiais, igualmente foram outros desenvolvimentos que trouxeram mudanças radicais na estética e na produção, sobretudo ao nível financeiro.

Com a mudança de bitola dos filmes de 16 mm – até aí a mais utilizada pelos cineastas independentes – para 35 mm, igualmente chegou a nova película de triacetato de celulose que, muito lentamente, substituiu a velhinha película de nitrato de celulose, muito mais sensível às agressões dos elementos, e sobretudo, bastante inflamável. Isto obrigou a criar melhores condições para o armazenamento das cópias, que começaram a ser acondicionadas a baixas temperaturas para melhor conservação a longo prazo. (Auster, 2002:233).

Os “efeitos especiais” integram uma área particularmente sensível nesta mudança do cinema mudo para o sonoro. Quase sempre havia um longo gag – corridas, quedas, fugas (Auster, 2002:14), – que girava em torno dos riscos que o herói corria para manter o fato limpo: lama e óleo do cárter, molho de tomate e melaço, fuligem das chaminés, salpicos das poças de água, sempre em que altura fosse havia sempre uma substância escura que ameaçava macular a virtuosa solenidade do fato. Havia sempre uma armadilha à espera, nem que fosse em pequenos charutos que explodiam, ou nas entradas dos esgotos que não costumavam ter tampas no exacto momento em que ia a passar um homem de fato branco. Era sabido que esse fato branco iria trazer sarilhos a quem o vestisse (Auster, 2002:31). Mas não era só: portas a fecharem-se com estrondo nos dedos, abelhas a encherem o pescoço de ferroadas, estátuas a caírem em cima dos dedos dos pés (Auster, 2002:34), são exemplos de gags usuais na época. Os “independentes”, tinham somente um ou dois criadores de gags e se a gravação não saísse bem à primeira não havia dinheiro para refazer uma cena depois do filme concluído, pois os figurantes saiam caros, e tudo tinha de ser despachado em prazos muito apertados; não havia tempo para reflexões (Auster, 2002:23). Não se podiam dar ao luxo de destruir uma dúzia de carros nem montar a louca debandada de uma manada de gado. As moradias não podiam desabar como castelo de cartas, os edifícios não podiam explodir. Nada de enxurradas nem tufões, nem localizações exóticas. “Gags à pressão”, ou seja, três gargalhadas por minuto e toca a pôr outra moeda na máquina (Auster, 2002:23), talvez tenha sido uma das técnicas mais ancestrais de efeitos especiais no cinema. A segunda, quando os actores deste período criaram um sistema interactivo de cinema, uma sintaxe do olho, uma gramática de pura “kinesis” (Auster, 2002:18). Finalmente, talvez aquela técnica que era mais perceptível, porque criava uma certa intimidade com o espectador: a do bigode do actor que funcionava como se fosse um puro sismógrafo. Perante a inexistência de som, era a maneira do actor comunicar com o espectador. Para além de ser um meio de comunicação, fazia-nos rir. Esta intimidade de um “bigode falante” foi uma criação da lente (Auster, 2002:30).

Algumas mudanças na estética dos filmes ocorreram com a passagem do mudo para o sonoro. Um dos estereótipos do cinema mudo era precisamente a sua mudez, também a ausência de cor, e os ritmos acelerados, convulsivos, que dificultavam a nossa visão (Auster, 2002:19). Era a presença do dandy sul-americano, o latim lover, o malandro trigueiro com sangue quente correndo nas veias e com o cabelo brilhante e penteado para trás (Auster, 2002:21), sempre de fato tropical branco e bigode negro e fino (Auster, 2002:15), numa mescla de espavento e polidez (Auster, 2002:31). – Curioso é que o fato branco tornava a personagem num perdedor esperado (Auster, 2002:32), ao mesmo tempo a personagem emprestava um certo “pathos” às partidas que o mundo lhe reservava, um herói romântico capaz de todas as façanhas (Auster, 2002:32); era um homem com um inesgotável talento para procurar o azar – Era um personagem que nunca se queixava e só vimos os seus monólogos do bigode (Auster, 2002:33). Era um herói romântico que era demasiado alto para representar o “clown” típico e demasiado atraente para desempenhar o papel de trapalhão inocente (Auster, 2002:32). Dos homens divertidos esperava-se que fossem pequenos, disformes e gordos, pois eles eram diabretes, bufões, patetas e vagabundos (Auster, 2002:32). Lembramos a rotundidade juvenil de Arbuckle, no seu acanhamento apatetado, nos seus lábios pintados, feminizados. Sobretudo, lembremos o dedo indicador que o actor se apressava a colocar na boca sempre que uma rapariga olhava para ele (Auster, 2002:32). Lembremos, também, alguns figurinos de mestres incontestáveis, todos também estereótipos do cinema mudo: o “vagabundo” do Chaplin com os sapatos na última e as roupas andrajosas; o “destemido” tímido Lloyd, com os seus óculos de armação de osso; o “simplório” do Keaton com o chapéu tão chato como uma panqueca e o rosto impassível. Para estes comediantes, depois do bigode, o fato era o instrumento mais importante na arte. (Auster, 2002:32). Não há dúvidas que estávamos a assistir ao fim do período dos palhaços e dos pantomimos (Auster, 2002:8), dos “double-takes”, dos passos de “swing”, dos rodopios de rumba (Auster, 2002:34) e da anarquia e gestos exagerados para explorar os motivos de riso fácil – Slapstick – (Auster, 2002:15). Da presença de raparigas de cabelo curto, maquilhagem exagerada e vestidos mais curtos que o usual – Flappers – (Auster, 2002:8), já nem se falava. Primeiramente com os actores, escondidos atrás do écran, a narrar ou a cantar, depois com o sistema Vidafone, a verdade é que agora os filmes falavam, e os filmes do passado com a sua mudez e a sua luz trémula caíram no esquecimento (Auster, 2002:8). Esporadicamente ainda era possível haver pequenos papéis mudos nalguns filmes sonoros, ou mesmo antes dos filmes principais ainda passavam alguns mudos (Auster, 2002:169) mas, de uma maneira geral, os distribuidores negavam-se a passar filmes sem som, e a indústria do mudo ia acumulando prejuízos (Auster, 2002:38). Muitos desses filmes mudos acabaram por apodrecer nas caves ou foram destruídos por incêndios, ou deitados fora para o lixo (Auster, 2002:16).

A maior parte dos filmes cómicos mudos mal se dava ao trabalho de contar uma história (Auster, 2002:19), e a partir da chegada do som começaram a realizar-se filmes sérios, por vezes um pouco “estranhos”; filmes extremamente íntimos, contidos, avessos a efeitos fáceis, mas sempre com uma componente de fantástico a impregná-los; uma espécie de poesia, um dar vida às imagens com o som, com o vento e com o bater de uma porta, “insignificâncias” que se ouvem diariamente no mundo real.

Os produtores independentes, mais livres dos constrangimentos comerciais, romperam com muitas regras, fizeram coisas que não estavam previstas que os realizadores de filmes fizessem, como a narração de filmes do princípio ao fim, sem qualquer diálogo, numa altura em que a narração era considerada uma fragilidade pois transmitia um sinal de que as imagens não funcionavam. Fizeram montagens sincopadas para mostrar alternâncias entre grandes-planos e planos médios (Auster, 2002:209). Corpos nus, sexo nu e cru, nascimento de crianças, micção e defecação, são coisas naturais da vida que não se estava habituado a ver em cinema (Auster, 2002:179). A sensação transmitida ao espectador levava-o a pensar que estava a viver aquela cena e não que estava a ver um filme; começava a haver algum enredo com as coisas reais da vida (Auster, 2002:212). Muitas vezes à música preferia-se o som da vida, como uma cama a ranger, como os passos de alguém a passar, como o leve ruído de um saco de papel a roçar nas mãos de alguém, etc.

Os géneros foram-se definindo e tornaram-se reconhecíveis diferentes tradições cinematográficas, com características e convenções mais ou menos estáveis, como as comédias de amor (Auster, 2002:207) e a ficção (Auster, 2002:208). No entanto os filmes ainda continham algumas cenas cómicas.

No início do mudo não havia qualquer guião, tal como não havia cenários nem adereços prontos antes da filmagem de cada cena. Com a chegada do sonoro, alguns cineastas independentes conseguiram construir os seus próprios estúdios de cinema; pequenos mas que se tornaram auto-suficientes. Espalhados por diversos edifícios havia estúdio de som, oficina de carpintaria, atelier de costura, camarins, armazém para guardar cenários e figurinos, laboratório de pós-produção, caves climatizadas para guardar as cópias e os negativos (Auster, 2002:205), sala de montagem, e sala de projecção equipada com duas máquinas de projecção, um impressor óptico e uma mesa de edição plana “Flatebed” (Auster, 2002:180), que veio substituir a velhinha “Moviola”. Além disso, poderiam estar a assistir às projecções cerca de 30 pessoas comodamente sentadas em cadeiras almofadas (Auster, 2002:206). Também havia um edifício separado onde os actores e técnicos dormiam durante as filmagens (Auster, 2002:180).

No entanto, tudo era ainda muito artesanal: o actor principal escrevia, fazia figurinos, pintava os cenários, dirigia e montava os filmes; outra pessoa iluminava, filmava e assegurava os trabalhos de laboratório; uma terceira pessoa misturava, cortava os negativos, misturava o som e guardava a cópia final na “lata” (Auster, 2002:180); ainda havia assistentes de montagem, assistentes de aderecista, pintores de cenários, supervisor de scripts, microfonista e operador de foco. Ninguém fazia apenas uma coisa, todos estavam envolvidos em tudo (Auster, 2002:181). Chegavam a contratar famílias inteiras, que por serem numerosas, desesperavam por um emprego. E lá havia trabalho para todos: os pais construíam os cenários e os filhos eram assistentes nas mais diversas funções (Auster, 2002:195). Durante as filmagens, actores, assistentes e técnicos podiam falar à vontade; com o sonoro o silêncio tinha de imperar em todo o grupo, e o novo elemento da equipa, o técnico de som, tornou-se, no início, como o ditador de novas regras incómodas. Da anterior produção de um filme mudo por mês (Auster, 2002:23), o trabalho agora era mais lento; normalmente demorava-se dois anos a concluir um projecto, sobretudo devido à escassez de pessoal (Auster, 2002:181). Havia argumentos para elencos curtos, e escolhiam-lhe apenas profissionais competentes. Não se queria grandes nomes. Noventa porcento dos actores estavam desempregados e se lhes oferecessem um trabalho com salário decente, não colocavam muitas perguntas quanto ao papel a desempenhar, pois sabiam que quando terminassem esse filme já havia à espera um novo contingente de actores por onde as produtoras pudessem escolher, visto ser raro utilizarem duas vezes os mesmos actores secundários (Auster, 2002:183). Em Hollywood as coisas funcionavam doutra maneira, e os filmes estavam classificados em séries A e B, e havia uma hierarquia nas várias profissões, onde os profissionais que normalmente se dedicavam aos filmes da série B nem sempre conseguiam arranjar trabalho (Auster, 2002:181).

PAUL AUSTER, com a sua capacidade de descrição, aprofunda a angústia do ser humano numa época estigmatizada pela ausência de valores estáveis e por uma voragem de referências efémeras e incómodas. Ele foi influenciado por diversos escritores e filósofos famosos, como Kafka, com uma escrita atenta ao menor detalhe e que abarca conteúdos como a alienação e a perseguição, cujos personagens suportam conflitos existenciais e que não sabem o rumo a tomar; por Sartre, quando defende que os seus “heróis” sejam homens livres e responsáveis por tudo o que os rodeia, inclusivamente pelo seu passado, presente e futuro; explora a humilhação, o assassinato, o suicídio e a loucura, como Dostoiévski; clama pelo dadaísmo, de Breton, sobretudo ao contestar a ideia de que a relação entre homem e mulher terá que ser de duração infinita; igualmente busca o absurdo, de Samuel Beckett; e, até, é adepto da técnica do retorno de personagens, conforme Beckett.

Não há dúvida que Paulo Auster aprofundou o seu conhecimento sobre o cinema mudo e o advento do cinema sonoro, não só pela inclusão na sua obra dos nomes de alguns cómicos do mudo, como Charlie Chaplin, Buster Keaton, Harold Lloyd, John Bunny, Larry Semon, Lupino Lane, Raymond Griffitj (Auster, 2002:14), mas também pela chamada “à cena” de alguns títulos de películas famosas. Para dar mais credibilidade à sua história, Paul Auster apela a filmes que, ou só mais tarde foram realizados, ou socorre-se de uma subtil metonímia, mesmo que o nome original nada tenha a ver com uma peça cinematográfica.

Paulo Auster não se ficou por aqui na utilização de nomes reais para a sua ficção. A própria “Kaleidoscope Pictures”, suposta produtora cinematográfica de Hunt, de 1927 (Auster, 2002:23), “usurpou” o nome de uma outra empresa, recente, esta sim produtora de cerca de 100 documentários sobre indivíduos dinâmicos, questões sociais e soluções de negócios globais. O ”Morning Chronicle” (Auster, 2002:44), um jornal britânico de 1769, também entrou no seu jogo de faz de conta. “Memórias de Chateaubriand”, “Memórias de um Morto” (Auster, 2002:58), memórias redigidas em diferentes épocas e em diferentes países, foram beber o nome a ”Memórias de Além-Túmulo”, de François-René de Chateaubriand. Auster transformou um ritmo Hip-Pop norte-americano, de 1992, numa bebida mortal, “Jazzmatazz” (Auster, 2002:40); lembrou “o idiota do Langdon, com pele branca como cal”, recorrendo a Robert Langlon, um professor da iconografia religiosa e simbólica, figura fictícia criada por Dan Brown; dois criadores de gags, Andrew Murphy e Jules Blaustein (Auster, 2002:23), são dois actores, o primeiro britânico, o segundo norte-americano; Dr. Sing, o médico psiquiatra do narrador da sua obra, não é mais do que Sing Lee, um psicanalista chinês da Universidade de Hong Kong; conseguiu marcar viagem para a Europa no “Queen Elizabeth II”, quando nessa altura este paquete já tinha dado como terminadas as suas viagens de carreira entre os Estados Unidos e a Europa; transforma um edifício carismático, “Fizzy Pop Beverage Corporation”, numa fábrica de refrigerantes; por último, e não menos interessante na sua obra, tudo leva a crer que o nome de Hector Mann não seja mais que uma réplica do nome de Hank Mann, um comediante americano do cinema mudo da primeira década do século passado, que na sua longa vida cinematográfica interpretou e realizou cerca de 500 filmes. Curioso que Paul Auster não tenha utilizado um único nome dos filmes deste comediante.



Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2011)

Programador Cultural

29 de Novembro de 2011


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