Considerações sobre “Dos lugares aos não-lugares” de Marc Augé

Considerações sobre “Dos lugares aos não-lugares” de Marc Augé

07/12/2010 0 Por hernani

Considerações sobre “Dos lugares aos não-lugares” de Marc Augé

“Um dia, talvez, de um outro planeta virá um sinal. E, por um efeito de solidariedade cujos mecanismos o etnólogo estudou a pequena escala, o conjunto do espaço terrestre tornar-se-á um lugar. Ser terreno significará alguma coisa. Até lá, não é certo que as ameaças que pesam sobre o meio ambiente bastem para tanto. É no anonimato do não-lugar que se experimenta solitariamente a comunidade dos destinos humanos”

(Marc Augé (1994) (1)
in “Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade” (2)

Marc Augé

No trabalho inicial (3), traduzido para português por Maria Lúcia Pereira (4), Marc Augé propõe o conceito de “não-lugares”, espaços abstratos que são porto de abrigo de vagas de indivíduos – “recebem indivíduos a cada dia mais numerosos” (1994, p. 102) – e por isso caracterizados como sendo locais de passagem e inaptos a potenciar qualquer tipo de identidade. Assim sendo, “espaços de anonimato”. “Um mundo onde se nasce numa clínica e se morre num hospital, onde se multiplicam, em modalidades luxuosas, ou desumanas, os locais de trânsito e as ocupações provisórias (as cadeias de hotéis e os terrenos invadidos, os clubes de férias, os acampamentos de refugiados, as favelas destinadas aos desempregados ou à perenidade que apodrece), onde se desenvolve uma rede cerrada de meios de transporte que são também espaços habitados, onde o frequentador das grandes superfícies, das máquinas automáticas e dos cartões de crédito renovado com os gestos do comércio “em surdina”, um mundo assim prometido à individualidade solitária, à passagem, ao provisório e ao efémero”. (1994, p. 73). Desta forma, o não-lugar será um lugar que não é identitário, que não é histórico e que não é relacional.

E Augé não concebe o “não-lugar” sem a existência do “lugar”, precisamente um espaço com as três dimensões “identitária”, “relacional” e “histórica”, definindo-o na sua essência como um “espaço antropológico” (5), onde impera uma relação intensa entre o espaço e o social, característica das sociedades arcaicas, onde o social “é, antes de tudo, o fato social totalmente percebido, isto é, o fato social em cuja interpretação está integrada a visão que pode ter dele qualquer indígena que o vive” (6). “Só que esse ideal de interpretação exaustiva (…) baseia-se numa conceção muito particular do homem “médio” (7), definido, também ele, como um “total” porque, diferentemente dos representantes da elite moderna, “ele é afetado em todo o seu ser pela menor de suas perceções ou pelo menor choque mental” (1994, p. 48). E, “por trás das ideias de totalidade e de sociedade localizada, há aquela de uma transparência entre cultura, sociedade e indivíduo” (1994, p. 49).

É o “lugar antropológico, simultaneamente princípio de sentido para aqueles que o habitam e princípio de inteligibilidade para quem o observa”, diz-nos Augé (1994, p. 51). – espaço que segue a par da modernidade, da “presença do passado no presente que o ultrapassa e o reivindica” (8), – mas com as inevitáveis metamorfoses da sociedade vai deixando cair lentamente esta relação, e no seu lugar aparece um outro espaço, que Augé apelida de “não-lugar”.

São as vicissitudes da modernidade, e Augé cita o espectáculo da “modernidade de Baudelaire” num artigo de Starobinski, sobretudo no primeiro poema dos “Tableaux parisiense”:

    1. “…l’atelier qui chante et qui bavarde;
    1. Les tuyaux, Ies clochers, ces mâts de Ia cité,

                  Et Ies grands ciels qui font rêver d’éternité“ (9) (1994, p. 72).

Para Augé, a diferença entre “lugares” e “não-lugares” passa pela oposição do “lugar” ao “espaço”. “O lugar, como o definimos aqui, não é em absoluto o lugar que Certeau (10) opõe ao espaço, como a figura geométrica ao movimento, a palavra calada à palavra falada ou o estado ao percurso: é o lugar do sentido inscrito e simbolizado, o «lugar antropológico» ” (1994, p. 76).

A sociedade que estamos inseridos é caracterizada pela velocidade e pelo consumo, onde as vivências subentendem uma relação de “meio/fim” e a “obtenção de objetivos”, e que poderemos materializar espacialmente através das autoestradas, dos centros comerciais, dos aeroportos, etc. Marc Augé analisa as transformações fundamentais que ocorreram nas sociedades do ocidente e cria um novo conceito a que chama de “sobremodernidade”, conceito este caracterizado por três figuras: “excesso de tempo”(11), excesso de espaço”(12), e “excesso do individuo”(13), onde essas “três figuras de excesso pelas quais tentamos caracterizar a situação de supermodernidade (a superabundância factual, a superabundância espacial e a individualização das referências) permitem apreendê-la sem ignorar as suas complexidades e contradições, mas sem fazer dela, também, o horizonte inultrapassável de uma modernidade perdida da qual só teríamos que levantar os vestígios, reportar os grupos étnicos que vivem isoladamente ou inventariar os arquivos. O século XXI será antropológico, não só porque as três figuras do excesso não são senão a forma atual de uma matéria-prima perene, que é a própria matéria da antropologia, mas também porque, nas situações de supermodernidade (como naquelas que a antropologia analisou sob o nome de “aculturação”), os componentes se somam sem se destruírem” (1994, p. 42).

Estes novéis espaços, produtos da sobremodemidade de Augé, impõem aos homens experiências e testemunhos de solidão que são muito novos, inesperados. O que os ligam aos espaços dos “não-lugares” são as imagens e as palavras que criam novas realidades. O autor dá-nos um exemplo de invasão do espaço pelo texto. “As grandes superfícies nas quais o cliente circula silenciosamente, consulta as etiquetas, pesa os legumes ou as frutas numa máquina que lhe indica, com o peso, o preço, e depois estende o cartão de crédito a uma jovem também silenciosa, ou pouco loquaz, que submete cada artigo ao registo de uma máquina descodificadora, antes de verificar o bom funcionamento do cartão de crédito.” (1994, p. 90).

Todo o não-lugar contém um lugar e, por sua vez, todo o lugar igualmente contém um não-lugar. É isso que nos diz Augé: “Na realidade concreta do mundo de hoje, os lugares e os espaços, os lugares e os não-lugares misturam-se, interpenetram-se. A possibilidade do não-lugar nunca está ausente de qualquer lugar que seja. A volta ao lugar é o recurso de quem frequenta os não-lugares (e que sonha, por exemplo, com uma residência secundária enraizada nas profundezas da terra). Lugares e não-lugares opõem-se (ou atraem-se), como as palavras e as noções que permitem descrevê-las” (1994, p. 98). “Encontrar o não-lugar do espaço, um pouco mais tarde, escapar à opressão totalitária do lugar, será encontrar algo que se assemelha à liberdade” (1994, p. 107).

NOTAS
(1) Marc Augé, Presidente da “École des Hautes Études en Sciences Sociales” em Paris, no período de 1985 a 1995, tem uma importante e conceituada obra publicada, da qual em Portugal conhecemos “As Formas do Esquecimento” (Iman), “A Guerra dos Sonhos” (Celta), “Diário de Guerra” (Fim de Século) e “Não-lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade” (90º, Bertrand).

(2) AUGÉ, Marc (1994) “Não-lugares: Introdução a uma antropologia da supermodernidade”, trad. PEREIRA, Maria Lúcia, Papirus (Campinas, São Paulo) 111 páginas.

(3) AUGÉ, Marc (1992) “Non-lieux. Introduction á une anthropologie de la surmodernité”, Le Seuil, Paris

(4)Texto distribuído, apesar do proposto na bibliografia ser “AUGÉ, Marc (2005), Não-lugares. Introdução a uma antropologia da sobremodernidade, s.l., 90º. (cap. «Dos lugares aos não-lugares)”.

(5) “O estatuto intelectual do lugar antropológico é ambíguo. Ele é apenas a ideia, parcialmente materializada, que têm aqueles que o habitam de sua relação com o território, com seus próximos e com os outros. Essa ideia pode ser parcial ou mitificada. Ela varia com o lugar e o ponto de vista que cada um ocupa.” (AUGÉ: 1994, p. 54).

(6)Aqui Marc Augé cita Lévi-Strauss.

(7) O autor chama aqui o homem “médio de Marcel Mauss. O homem “médio”, para Mauss, é, na sociedade moderna, qualquer um que não pertença à elite. O arcaísmo, porém, só conhece a média. O homem “médio” é semelhante a “quase todos os homens das sociedades arcaicas ou atrasadas” uma vez que ele apresenta, como eles, uma vulnerabilidade e uma permeabilidade a seu círculo imediato que permitem precisamente defini-lo como “total”. (AUGÉ: 1994, p. 49).

(8) Argé cita que “é nessa conciliação que Jean Starobinski vê a essência da modernidade”(AUGÉ: 1994, p.71).

(9) “…a oficina que canta e tagarela; / As chaminés, os campanários, esses mastros da cidade / E os grandes céus que levam a sonhar com a eternidade. (N. T.) “

(10) Michel de Certeau não opõe os “lugares” aos “espaços” como os “lugares” aos “não-lugares”. O espaço, para ele, é um “lugar praticado”, “um cruzamento de forças motrizes”: são os passantes que transformam em espaço a rua geometricamente definida pelo urbanismo como lugar. Para animação do lugar coexistem um certo número de elementos que se distinguem em diversas referencias: A primeira referência é a que na sua Fenomenologia da perceção, distingue do “espaço geométrico” o “espaço antropológico” como espaço “existencial”. A segunda é “o espaço seria para o lugar o que se tornaria a palavra quando é falada. A terceira, “transforma lugares em espaços ou espaços em lugares” (AUGÉ: 1994, p. 75).

(11) Augé refere-se à nossa perceção do tempo, mas também ao uso que fazemos dele. E coloca a questão de que o tempo hoje, para alguns intelectuais, não é um princípio de inteligibilidade. E considera que “se os historiadores, na França, principalmente, duvidam hoje da história, não é por razões técnicas ou razões de método (a história como ciência fez progressos), mas porque, mais fundamentalmente, eles sentem grandes dificuldades não só em fazer do tempo um princípio de inteligibilidade, como, mais ainda, em inserir aí um princípio de identidade. Aliás, vemo-los privilegiar certos grandes temas ditos “antropológicos” (a família, a vida privada, os lugares de memória)” (AUGÉ: 1994, p. 28).

(12) O autor sustenta que estamos na era das mudanças de escala, tanto no que diz respeito à conquista espacial como também em terra “Os meios de transporte rápidos põem qualquer capital no máximo a algumas horas de qualquer outra. Na intimidade de nossas casas, enfim, imagens de toda espécie, transmitidas por satélites, captadas pelas antenas que guarnecem os telhados da mais afastada de nossas cidadezinhas, podem dar-nos uma visão instantânea e, às vezes, simultânea de um acontecimento em vias de se produzir no outro extremo do planeta” (AUGÉ: 1994, p. 34).

(13) Sobretudo pelo efeito do enfraquecimento das referências coletivas. Nomeadamente das referências de um mundo como o que Jacques Le Goff mostrou que se construiu, a partir da Idade Média: “em torno da sua igreja e do seu campanário, pela conciliação de uma paisagem recentrada e de um tempo reordenado” (AUGÉ: 1994, p. 72).



Hernâni de Lemos Figueiredo
©Hernâni de Lemos Figueiredo (2010)

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